Lembro de te ouvir dizer que logo viria me visitar.
Depois de tua partida, no entanto, um milhão de pessoas bateram à minha porta e
nenhuma delas era você. A casa sempre aberta, a mesa forrada, um vaso de flores
mais secas do que murchas, um prato de comida azeda te esperando com os
talheres lustrosos e uma garrafa barata de um vinho qualquer. As velas, já de
todo derretidas, pintalgando o florido da toalha com suas lágrimas de glicerina,
lágrimas tão duras quanto as minhas, tão foscas quanto meu coração. E o meu
sorriso comportado não passava de um vulgo detalhe que compunha a decoração,
tão artificial quanto tudo o que me rodeava.
É tão humilhante admitir que não vali o preço da loucura, e imaginar a
gratuidade da razão pintando um retrato de casal feliz em que eu não apareço.
Talvez eu esteja por de trás da câmera focalizando e enquadrando sua sóbria
felicidade, invejando-a, praguejando-a. Ou, quem sabe, eu seja um vulto
escondido atrás do seu sorriso, uma escuridão esquecida no fundo dos seus olhos
risonhos, fazendo-os enxergar as marcas do abandono tatuadas no meu peito nu. Resta-me
agonizar dia após dia no resvalo do meu amor egoísta, pois os ismos que hoje me
movem nunca foram capazes de me fazer lutar por alguém que não fosse eu.
De que me importa sua alegria se ela se esconde
numa redoma de vidro blindado num altar de glórias cujas minhas orações não
alcançam? Nada, menos que o nada ou talvez mais que tudo. A vontade que tenho
de jogar meu rancor na tua cara, te chamar de covarde e te fazer chorar é tão
grande quanto a vontade que tenho de te roubar para mim, te trazer pra casa e
cuidar de você como eu nunca cuidei. Cuidar como meu orgulho sempre impediu. E
mais uma vez a maldição do atraso, ou de uma mente precipitada demais, desgraçou-se
inquebrável sobre os sonhos que eu talvez nunca realize.
Parágrafos e versos ecoam a cada lágrima que cai, e
é tão inútil, é tudo tão inútil, como se me ridicularizar a preço de suplícios
apaixonados me tornasse merecedor de coisas que há tempos perdi. Onde está em
mim a sensatez que te fez partir? Onde está em ti a insanidade que me fez
ficar? E as perguntas vão e voltam como sempre: cheias de poesia, mas sem a
serventia de uma resposta que me valha o preço do pranto. Ah, como é patético! E imaginar que o futuro
me reserva tantos amores, tantas dores e tantas lágrimas que cairão, evaporarão
e virarão lembranças como a que sou agora.
Há no mundo maior desgraça que a de ser reduzido à
lembrança? Quando pequeno ouvia os adultos dizerem que quando uma pessoa morre
e parte desta terra, se transforma em estrela do céu, para que a cada alma que
se vai o mundo fique menos escuro. É mentira! Não viramos estrela, santo, anjo,
espírito ou demônio. Nos tornamos lembrança e é por isso que tememos a
morte. Perder a vida, tudo bem. Se tornar uma mera lembrança, jamais. Imagine você,
então, o quanto dói ser desfeito em memória quando ainda em vida e não ter ao
menos o consolo da morte para me afagar na inexistência. Maldita seja a
indignidade da morte, que deixa seu rastro de sangue pelas nações, mas nunca
chega a meu encalço.
Quantas eternidades terei de esperar até que você
se torne somente um resvalo da memória e parta para a terra dos amores que
morrem antes de inspirar poesia? É tão bonito quando não é com a gente, não é?
E sem obter respostas me contento em lançar perguntas ao vento e deixar que a
brisa me traga as sobras que o destino guardou para mim: o frio, a fuligem e o
seu cheiro perdido na distância. Como é maravilhosa a promessa de um amanhã sem
amores, e como é monstruoso saber que você não fará parte dele. Como é sublime
a ideia de um coração indolor, e como é ao mesmo tempo vazia.
Odisseias e pentateucos despaginados serão escritos
e adorados antes que eu me perdoe por não ter te amado quando tive a chance de
amar, e minhas lereias prolixas hão de emocionar muitas almas antes que você
tenha a decência de derramar sequer uma lágrima por mim. Lágrimas de glicerina,
que sejam, duras e leitosas como é do meu agrado. Mas pedir que eu vire as
costas e vá viver outro amor é demais para mim. Inúmeras vezes à beira da cama,
silvando outros nomes, beijando outros corpos, recordei com remorso de seus
dedos macios tocando meus prazeres seviciados, convencendo-me de escrúpulos que
não me pertenciam. Permiti que burlassem as leis do meu universo imoral, e
descobri que carregava nobreza demais para que eu pudesse suportar.
Não obstante, meu apelo sôfrego mal teve a chance
de alcançar seus ouvidos bondosos e te dar a chance de pensar em mim outra vez.
Agora meu universo sem forma se estende ao meu redor como um lamaçal de
fracassos, ora paradisíaco, ora bestial, nem bom e nem mau, sem destino ou
ponto de partida. Tais alucinações, obviamente, aludem-se somente no avesso dos
meus olhos desfocados, pois em minha casa, sobre minha mesa posta, há somente
um sorriso comportado compondo a decoração da forma mais plastificada que um
ser humano poderia assumir. Humano, eu? Imagine só! Muito menos que isso,
talvez como os vermes que decompõe o prato de comida embolorado em cima da
mesa. Se o cheiro da podridão emana do prato, do vinho choco ou de meu peito
chagado, eu não sei, mas a porta de trás já está destrancada. Estou te
esperando, vê se não vai demorar.
a glicerina é atóxica, insípida e inodora. Você está imune. Agora é só alegria.
ResponderExcluirAcabei de ler seu texto.
ResponderExcluirQuantas imagens duma vez só!
E "há no mundo maior desgraça que a de ser reduzido à lembrança?" poderia ser o título da autobiografia que nunca escreverei.
De toda sorte, foi uma grata surpresa saber que você escrevia tão bem.
Mais um predicado para a sua coleção de qualidades.
P.S.: Gostei também da sua descrição no blog. Muito, mas muito estimulante.