O barulho dos cães
latindo de madrugada nunca me serviu de alerta. Fora sempre como um ladrar da
esperança, anunciando que mais uma manhã se avizinhava e que meu auspício de
fim dos dias era, como de costume, somente um auspício. Por outro lado, o
silêncio ronronante dos vira-latas vigilantes nunca me fora sinônimo de
calmaria, até o dia em que o fantasma do seu passado pulou o muro dos meus
pesadelos e invadiu minha casa.
Era uma noite
quente como o semiárido sertanejo jamais conheceu, e dentre as partículas de
poeira que pairavam no ar meramente respirável vinha um cheiro de malícia muito
parecido com aquele que conheci no teu quarto, naquele inocente antro de
adultérios e promessas vazias. Eu estava na janela quando tudo aconteceu,
respirando a poluição alucinógena dessa cidade tão sóbria e olhando por cima
dos telhados, imaginando quantos deles abrigavam corpos nus embevecidos pelo
mesmo vício caviloso cuja overdose não teve a competência de matar nós dois por
inteiro.
Seria tão bonito,
não? Se ao provar de teu veneno leitoso nosso amor falecesse num último beijo
apaixonado. Mas sempre que nossos lábios se separam há uma maldita e torturante
promessa de reencontro. E lá estava você fazendo jus ao nosso infortúnio, sua
inconfundível silhueta recortada sob os tijolos mal assentados da minha casa,
fitando-me de rosto orvalhado não sei se de sereno ou se talvez de suor. E
estava lindo, não como de costume, mas como eu sempre me acostumei a imaginar.
Trazia no olhar
aquele convite para aventuras e nas mãos uma flor, uma aliança que não era
comigo e a tremedeira típica de um covarde mascarado pelo instinto. Ah, como
era desprezível. Talvez não tanto quanto eu, admito, mas ao menos tive a
decência de ser autêntico na minha podridão moral. Quantos de teus princípios
são postos à prova quando engendra teu corpo dentro do meu? Muitos, eu sei. Meu
consolo é imaginar-te na penitência eterna de um amor velado pela covardia e
por uma sensatez que te cai como uma luva. Sim, como uma luva, mas é com as
mãos despidas que você vibra ao tocar meu despudor.
Não passou de um
relance. Por um momento desviei os olhos para algum farol piscando ao longe e
quando retornei você já havia desaparecido, naturalmente. Não que eu não
desejasse mais que alguns segundos em sua companhia, mas já abandonei a
ingenuidade de esperar que esteja ao meu alcance sempre que eu abrir os olhos.
Este tempo bonito se foi, hoje você pertence ao mundo dos casais felizes do
qual há tempos me exilei e jamais encontrei o caminho de volta. Sua existência
hoje se resume em cartas de amor, vislumbres soturnos durante a noite e à
alucinações inspiradas por coisas triviais como cães ladrando, dias amanhecendo
ou sereno caindo.
Quantas madrugadas
hão de ser declamadas antes que eu mergulhe no imbróglio de outro amor? Muitas,
eu sei. Mas a busca por palavras que as descrevem tem se tornado uma tarefa
árdua demais para mim, cansativa demais, estúpida demais. E antes que a poesia
me consuma e me transforme num mal-amado movido por metáforas e alimentado por
mais predicados do que sujeitos, hei de dar ao mundo aquilo que tenho de maior
a valia. Busquei então no meu testamento o registro de meu oneroso tesouro e as
únicas coisas que encontrei foram canetas gastas, cuecas frouxas e uma
embalagem de chocolate esquecidos no fundo da gaveta mais escura. Com as
canetas escrevi estas palavras. As cuecas usei para secar as lágrimas. A
embalagem guardei no caderno como teu último presente. E seu conteúdo, ah, dei
de comer aos cachorros que não paravam de latir.
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