segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Súmula às três da madrugada



O barulho dos cães latindo de madrugada nunca me serviu de alerta. Fora sempre como um ladrar da esperança, anunciando que mais uma manhã se avizinhava e que meu auspício de fim dos dias era, como de costume, somente um auspício. Por outro lado, o silêncio ronronante dos vira-latas vigilantes nunca me fora sinônimo de calmaria, até o dia em que o fantasma do seu passado pulou o muro dos meus pesadelos e invadiu minha casa.
Era uma noite quente como o semiárido sertanejo jamais conheceu, e dentre as partículas de poeira que pairavam no ar meramente respirável vinha um cheiro de malícia muito parecido com aquele que conheci no teu quarto, naquele inocente antro de adultérios e promessas vazias. Eu estava na janela quando tudo aconteceu, respirando a poluição alucinógena dessa cidade tão sóbria e olhando por cima dos telhados, imaginando quantos deles abrigavam corpos nus embevecidos pelo mesmo vício caviloso cuja overdose não teve a competência de matar nós dois por inteiro.
Seria tão bonito, não? Se ao provar de teu veneno leitoso nosso amor falecesse num último beijo apaixonado. Mas sempre que nossos lábios se separam há uma maldita e torturante promessa de reencontro. E lá estava você fazendo jus ao nosso infortúnio, sua inconfundível silhueta recortada sob os tijolos mal assentados da minha casa, fitando-me de rosto orvalhado não sei se de sereno ou se talvez de suor. E estava lindo, não como de costume, mas como eu sempre me acostumei a imaginar.
Trazia no olhar aquele convite para aventuras e nas mãos uma flor, uma aliança que não era comigo e a tremedeira típica de um covarde mascarado pelo instinto. Ah, como era desprezível. Talvez não tanto quanto eu, admito, mas ao menos tive a decência de ser autêntico na minha podridão moral. Quantos de teus princípios são postos à prova quando engendra teu corpo dentro do meu? Muitos, eu sei. Meu consolo é imaginar-te na penitência eterna de um amor velado pela covardia e por uma sensatez que te cai como uma luva. Sim, como uma luva, mas é com as mãos despidas que você vibra ao tocar meu despudor.
Não passou de um relance. Por um momento desviei os olhos para algum farol piscando ao longe e quando retornei você já havia desaparecido, naturalmente. Não que eu não desejasse mais que alguns segundos em sua companhia, mas já abandonei a ingenuidade de esperar que esteja ao meu alcance sempre que eu abrir os olhos. Este tempo bonito se foi, hoje você pertence ao mundo dos casais felizes do qual há tempos me exilei e jamais encontrei o caminho de volta. Sua existência hoje se resume em cartas de amor, vislumbres soturnos durante a noite e à alucinações inspiradas por coisas triviais como cães ladrando, dias amanhecendo ou sereno caindo.
Quantas madrugadas hão de ser declamadas antes que eu mergulhe no imbróglio de outro amor? Muitas, eu sei. Mas a busca por palavras que as descrevem tem se tornado uma tarefa árdua demais para mim, cansativa demais, estúpida demais. E antes que a poesia me consuma e me transforme num mal-amado movido por metáforas e alimentado por mais predicados do que sujeitos, hei de dar ao mundo aquilo que tenho de maior a valia. Busquei então no meu testamento o registro de meu oneroso tesouro e as únicas coisas que encontrei foram canetas gastas, cuecas frouxas e uma embalagem de chocolate esquecidos no fundo da gaveta mais escura. Com as canetas escrevi estas palavras. As cuecas usei para secar as lágrimas. A embalagem guardei no caderno como teu último presente. E seu conteúdo, ah, dei de comer aos cachorros que não paravam de latir. 

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