terça-feira, 5 de maio de 2015

A Falácia do Espelho



Tudo aconteceu numa tarde de outono, sufocante demais para nomeá-la inverno, cinzenta demais para chamá-la verão. Naquele dia fatídico, como em todo dia fatídico, eu acordei rebuçado de alardes e dores, tendo sempre o cuidado de me manter longe do alcance das janelas, ora, pois o céu estava carregado e trovoava em sussurros: eram as nuvens conspirando algo que cairia sobre mim. Se eram chuviscos sussurrantes ou tempestades uivantes, àquela hora eu ainda não sabia, mas no fundo eu já imaginava que viria em pancadas. Passava pouco das três – a hora da crucificação, como dizem os antigos – quando as semanas de calvário que pesavam sobre os meus ombros resolveram ceder sobre meus joelhos magros, um dia esfolados de ave marias, hoje escoriados pela desonrosa posição dos cabritos. Bem sabem os sodomitas que nem tudo que se faz ajoelhado é rezar.
Lá fora, onde meus gemidos não são ouvidos, o mormaço dava lugar a uma brisa gelada que assobiava, não como uma corrente de ar se enfiando por uma fresta, mas obscenamente, feito um bêbado chamando a atenção de uma prostituta. Como um vira-lata que escuta a voz do dono, aquele chamado, outrora tão familiar, me fez levantar as orelhas e abanar o rabo, e por um breve segundo eu me esqueci das coleiras da moral e das cruzes calvariantes que por semanas carreguei.  Eram cruzes de silêncio, esculpidas em toras de indiferença, amarradas com cordas de sufoco e pregadas com estacas de perfurar corações. Poderiam ser obra de um marceneiro satânico, mas eram, lastimavelmente, os presentes que recebi do homem que mais amei. De olhos e ouvidos virgens me mantive por muito tempo, mas foram tantos os silêncios que bastou um assovio gelado numa tarde de solidão para macular as juras de amor eterno que dediquei a ti. Eis a falácia do reflexo, o paradoxo do espelho, o princípio alquímico da ação e reação, onde o amor e ódio não são imagens contrárias, mas inversamente proporcionais.
Reflexo por reflexo, nu perante o nu, lá estava eu refletido num retângulo prateado que muitas vezes foi moldura para o nosso amor. Naquele espelho cristalino demais, naquele banheiro sempre limpo demais, permiti que a imundície do meu coração solitário me fizesse companhia, e que a fúria da rejeição distorcesse a verdade, como a distorção de um flash disparado contra um espelho. E sendo assim, por um descuido, ingenuamente capturei o registro do meu pecado, sem me atentar que o esgar indolor que se escondia no fundo dos meus olhos jamais poderia ser fotografado. Para a posteridade deixei o retrato da minha maledicência, para finalmente descobrir que não há forma de fotografar o que há no meu coração. Hoje, sozinho nesta minha cela que alguns chamam de quarto, pago a sentença perpétua por um crime que não cometi. Sentado nesta cama fria que já nem tem mais o meu cheiro, encaro com rancor a última fotografia do meu álbum de fracassos.
É o que resta ao assassino retardado, que ao invés de tecer um crime sem suspeitas, tropeça na dúvida, esbarra no medo, se acidenta na fuga, deixa um lamaçal de pegadas e provas espalhadas pelo chão e na hora de fazer sua vítima, por fim, descobre que a arma não tem munição. Não obstante, preparo um dossiê de arrependimentos e o entrego nas mãos do meritíssimo homem que me responde sempre com o mesmo bordão de justiça: “Você tem o direito de permanecer calado!”. Ainda que mudo, mesmo que calado, temo me engasgar com o grito de “eu te amo” que há muito trago entalado na garganta, não porque eu não conseguisse dizê-lo, mas por medo de que ele nunca fosse respondido.  Doravante, sem álibi e sem perdão, espio através do meu espelhinho de cabeceira – muito menor que o seu – e vislumbro o olhar perdido da única testemunha da minha inocência. Meus olhos, no entanto, castanhos e cheios de argumentos vazios, só podem me alentar com o mesmo soslaio impiedoso que muitas vezes te flagro lançando sobre mim. Como podem ser os teus olhos tão meigos e, ao mesmo tempo, tão duros?
Dureza por dureza, hoje posso apenas me conformar com a rigidez do teu corpo dentro do meu, como uma esmola, uma gorjeta, um prêmio de consolação por bom comportamento. Minhas tardes de outono, hoje, diferentes daquela em que por um infortúnio te perdi, me convidam a banhos de sol fora da cela que sequer me queimam a pele – como é do seu agrado – e que tampouco me aquecem o espírito. Na frialdade do inverno que se aproxima, sofro por antecipação às noites que não me aquecerei em teus braços, imaginando os usurpadores de um lugar que nunca acreditei que fosse meu. Quisera eu que, por um milagre, você pudesse ler o reflexo dos meus olhos e visse que nem só de fotos no espelho se faz um autorretrato. Minha autoimagem é muito mais diabólica que uma silhueta nua na penumbra de um banheiro, mas a escuridão que se aloja no avesso das minhas pálpebras é angelical como um céu estrelado, anoitecendo meus medos sempre que fecho os olhos pra receber um beijo seu.
Mas palavras – como você insiste em dizer – são só palavras. E um poeta, por sua vez, é só um poeta. Dói admitir que eu seja apenas mais um. Um escravo do verbo, a serviço do que é duro ao coração e macio aos ouvidos. Dissera uma vez um sábio, um velho amigo dos tempos de criança, que na sua mais humilde opinião as palavras são, sobretudo, nossa inesgotável fonte de magia. Sob a maldição do silêncio eu me apaixonei por ti, me contentando em lamber e sugar uma língua salivante, porém adormecida. No sono encantado dos príncipes, onde a magia das palavras não é mera poesia, mas suprema lei, muitas bocas se satisfizeram na minha, mas apenas uma me despertou do eterno pesadelo. Desde então, depois que a flâmula da minha lealdade chegou a galope, jamais cavalguei ante um brasão que não fosse o teu. Cabe a ti o decreto de despir essa máscara de bobo cortês e subir ao trono que é seu por direito. Em algum lugar neste calabouço que você chama de coração, eu sei, há uma multidão que clama: “Vida longa ao rei!”.
E assim, enquanto minhas metáforas tolas brincam com a longitude da vida, a minha se encurta a cada sorriso que você me nega, a cada abraço frouxo e ligeiro que você me dá, a cada gemido de prazer que se perde no silêncio das madrugadas. Insisto, entre reflexos culpados e versos confessionais, em tentar descobrir uma forma de abrir o seu peito e plantar dentro dele a verdade. Pois ser artista, ao contrário do que pensa, não faz de mim um fabricante de mentiras, mas o oposto: um cultivador da mais intensa verdade. É fazer das vísceras coração, e entregar a ti este meu coração indigesto, incapaz de engolir as ofensas que ferem meus ouvidos anestesiados de paixão. Pois ainda que não nos sobre uma gota de amor, que me reste de herança a poesia: “Sabemos que existem sombras para as sombras das coisas, como um reflexo visto no espelho de um espelho. Sabemos que existem círculos dentro de círculos e dimensões além de dimensões. A própria realidade é uma sombra, somente uma aparência aceita por aquele cujos olhos evitam o que está além.”.