sexta-feira, 13 de julho de 2012

Lábios Rachados



Lábios rachados. Não pelo sol, mas pelo sal que tempera a várzea dos olhos meus. Ressequidos, escarificados, banhados pelo agreste delgado de uma boca que nunca recebeu um beijo de verdadeiro amor. A pele crespa, áspera, amontoava-se por sobre dentes amarelados cujo sorriso esperava eternamente o bater de uma fotografia, uma fotografia revelada no avesso dos olhos daqueles que nunca souberam amar. Não houve flash, não houve fumaça, não houve amor. O único relâmpago que rasgou a escuridão nunca chegou a ser visto por olhos humanos, pois aquela luz se chamava razão, e ela não os pertencia.
Senti na testa o dedo da moral me julgar sem o menor consolo, porém na nuca era a mão rude e calejada da devassidão que me enforcava sem o menor pudor, como se minhas ancas curvilíneas fossem pedaços de carne entregues ao destino. Se eram homens ou abutres que haveriam de comê-las, nunca cheguei a saber, mas ao destino não sobrou nenhuma orgástica fatia do meu corpo destemperado e cru. Apenas os lábios, murchos como uma flor colhida no inverno, podres como uma fruta regada no verão.
Outonos e mais outonos sarapintaram meu chão com suas folhas alaranjadas, deixando que somente os ramos secos da minha imaginação continuassem apontando para o céu sem vento, em sua cor de tristeza. Cada galho representava um destino, assim como cada forquilha significava o início de um novo caminho. A grande desgraça era saber que a primavera jamais chegaria, pois independente do caminho escolhido, meus botões cairiam antes mesmo que chegassem a florescer. E me restaria, como de costume, apenas os galhos secos, as folhas mortas e a casca alquebrada, trincada como a boca que vos fala.
Quão afáveis foram os beijos com sabor de sangue, lavrando meus lábios com línguas macias e presas mordentes, sublimando da minha saliva toda a inocência que nunca preencheu meu espírito, silvando ao pé do ouvido promessas de amor que findam quando o dia amanhece. Doravante, quando o sol finalmente desponta, nem prometidos e nem prometedores fazem-se presentes, fogem todos, no intuito de alimentar suas almas sujas e anoitecidas, porém não tão escuras quanto a minha.
Até que num dia como outro qualquer, triste como outro qualquer, os botões das flores deixaram de cair, tal como deixaram de nascer. As folhas deixaram de forrar o chão, pois sequer chegavam a brotar. E os lábios não mais voltaram a sangrar, pois jamais voltaram a sorrir. A fotografia foi revelada por fim registrando o esgar indolor de um rosto cadavérico, no entanto de uma imaculada beleza, de uma perfeição intocada. Satânica, diriam alguns. Os olhos sepultavam-se profundamente, toldados por cílios bonitos e sobrancelhas minuciosamente desenhadas, doentios, mas ainda assim radiantes.
E a boca, ah, aquela boca, desenhava-se no papel num ângulo tão indescritível quanto as palavras que ela nunca fora capaz de dizer, pois mesmo representada em tinta, luz e sombra, emitia um desespero crocitante àqueles que tiveram a audácia de amar sem ser amado. Exprimia, selada e silenciosa, não dor, não sofrimento, tampouco alegria. Não sorria nem se enrugava. Sem sangue, sem cor, sem lábios trincados. Sem primaveras, verões ou outonos alaranjados. Não passava de uma cicatriz, um lacre de medo onde antes haviam canções, beijos e sorrisos. E dentro dela, amaldiçoado pelo silêncio e pela distância, grafado a ferro e fogo na rósea maciez da língua, havia um nome. Um nome que jamais voltaria a inspirar poesias. Um nome que era seu, outrora meu, e de mais ninguém.