segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Lágrimas de Glicerina




Lembro de te ouvir dizer que logo viria me visitar. Depois de tua partida, no entanto, um milhão de pessoas bateram à minha porta e nenhuma delas era você. A casa sempre aberta, a mesa forrada, um vaso de flores mais secas do que murchas, um prato de comida azeda te esperando com os talheres lustrosos e uma garrafa barata de um vinho qualquer. As velas, já de todo derretidas, pintalgando o florido da toalha com suas lágrimas de glicerina, lágrimas tão duras quanto as minhas, tão foscas quanto meu coração. E o meu sorriso comportado não passava de um vulgo detalhe que compunha a decoração, tão artificial quanto tudo o que me rodeava.
É tão humilhante admitir que  não vali o preço da loucura, e imaginar a gratuidade da razão pintando um retrato de casal feliz em que eu não apareço. Talvez eu esteja por de trás da câmera focalizando e enquadrando sua sóbria felicidade, invejando-a, praguejando-a. Ou, quem sabe, eu seja um vulto escondido atrás do seu sorriso, uma escuridão esquecida no fundo dos seus olhos risonhos, fazendo-os enxergar as marcas do abandono tatuadas no meu peito nu. Resta-me agonizar dia após dia no resvalo do meu amor egoísta, pois os ismos que hoje me movem nunca foram capazes de me fazer lutar por alguém que não fosse eu.
De que me importa sua alegria se ela se esconde numa redoma de vidro blindado num altar de glórias cujas minhas orações não alcançam? Nada, menos que o nada ou talvez mais que tudo. A vontade que tenho de jogar meu rancor na tua cara, te chamar de covarde e te fazer chorar é tão grande quanto a vontade que tenho de te roubar para mim, te trazer pra casa e cuidar de você como eu nunca cuidei. Cuidar como meu orgulho sempre impediu. E mais uma vez a maldição do atraso, ou de uma mente precipitada demais, desgraçou-se inquebrável sobre os sonhos que eu talvez nunca realize.
Parágrafos e versos ecoam a cada lágrima que cai, e é tão inútil, é tudo tão inútil, como se me ridicularizar a preço de suplícios apaixonados me tornasse merecedor de coisas que há tempos perdi. Onde está em mim a sensatez que te fez partir? Onde está em ti a insanidade que me fez ficar? E as perguntas vão e voltam como sempre: cheias de poesia, mas sem a serventia de uma resposta que me valha o preço do pranto.  Ah, como é patético! E imaginar que o futuro me reserva tantos amores, tantas dores e tantas lágrimas que cairão, evaporarão e virarão lembranças como a que sou agora.
Há no mundo maior desgraça que a de ser reduzido à lembrança? Quando pequeno ouvia os adultos dizerem que quando uma pessoa morre e parte desta terra, se transforma em estrela do céu, para que a cada alma que se vai o mundo fique menos escuro. É mentira! Não viramos estrela, santo, anjo, espírito ou demônio. Nos tornamos lembrança e é por isso que tememos a morte. Perder a vida, tudo bem. Se tornar uma mera lembrança, jamais. Imagine você, então, o quanto dói ser desfeito em memória quando ainda em vida e não ter ao menos o consolo da morte para me afagar na inexistência. Maldita seja a indignidade da morte, que deixa seu rastro de sangue pelas nações, mas nunca chega a meu encalço.
Quantas eternidades terei de esperar até que você se torne somente um resvalo da memória e parta para a terra dos amores que morrem antes de inspirar poesia? É tão bonito quando não é com a gente, não é? E sem obter respostas me contento em lançar perguntas ao vento e deixar que a brisa me traga as sobras que o destino guardou para mim: o frio, a fuligem e o seu cheiro perdido na distância. Como é maravilhosa a promessa de um amanhã sem amores, e como é monstruoso saber que você não fará parte dele. Como é sublime a ideia de um coração indolor, e como é ao mesmo tempo vazia.
Odisseias e pentateucos despaginados serão escritos e adorados antes que eu me perdoe por não ter te amado quando tive a chance de amar, e minhas lereias prolixas hão de emocionar muitas almas antes que você tenha a decência de derramar sequer uma lágrima por mim. Lágrimas de glicerina, que sejam, duras e leitosas como é do meu agrado. Mas pedir que eu vire as costas e vá viver outro amor é demais para mim. Inúmeras vezes à beira da cama, silvando outros nomes, beijando outros corpos, recordei com remorso de seus dedos macios tocando meus prazeres seviciados, convencendo-me de escrúpulos que não me pertenciam. Permiti que burlassem as leis do meu universo imoral, e descobri que carregava nobreza demais para que eu pudesse suportar.
Não obstante, meu apelo sôfrego mal teve a chance de alcançar seus ouvidos bondosos e te dar a chance de pensar em mim outra vez. Agora meu universo sem forma se estende ao meu redor como um lamaçal de fracassos, ora paradisíaco, ora bestial, nem bom e nem mau, sem destino ou ponto de partida. Tais alucinações, obviamente, aludem-se somente no avesso dos meus olhos desfocados, pois em minha casa, sobre minha mesa posta, há somente um sorriso comportado compondo a decoração da forma mais plastificada que um ser humano poderia assumir. Humano, eu? Imagine só! Muito menos que isso, talvez como os vermes que decompõe o prato de comida embolorado em cima da mesa. Se o cheiro da podridão emana do prato, do vinho choco ou de meu peito chagado, eu não sei, mas a porta de trás já está destrancada. Estou te esperando, vê se não vai demorar. 

domingo, 16 de setembro de 2012

Gargalo



Ei, garçom
Dê-me uma dose de lágrimas
Daquelas bem caprichadas
Choradas por um amor que morreu

Traga também um isqueiro
E um palheiro pra tragar os sonhos
Um saleiro pra salgar a alma
Que o pranto dessalificou

Traga também o bilhete
Que o moço bonito nunca me escreveu
E diga a ele que eu aceito
O seu pedido de casamento

Diga ao dono do bar
Que hoje eu mesma fecho as portas
Coloco o lixo pra fora
E vou com ele quando o caminhão passar

Chame aquele mendigo
Dê a ele os meus sapatos novos
Para ele caminhar meus passos
E deixar a sarjeta pra mim

Peça àquela senhora
Que fala da vida do povo
Que venha me falar da minha
Pois de minha história eu esqueci

Traga também outro copo
Sente-se e beba comigo
E chore para eu ter a certeza
Que meu sofrimento é maior que o teu

Por favor, desligue a vitrola
Todas as músicas me fazem lembrar
Do homem que deixou de cantar
Juras de amor por mim

Faça-me uma cortesia
Um gracejo, um beijo, sei lá
Apenas me faça acreditar
Que eu ainda sou moça bonita

Venha, aceite a gorjeta
Não é muito coisa, eu sei
Mas assim como meu despudor
É concedida de boa vontade

Espie, meu copo secou
As cinzas se esfriaram todas
Acho que é hora de voltar pra casa
Tenho outras lágrimas pra engarrafar. 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Quando o silêncio fala mais alto que o amor.

Tantas e tantas vezes olhei pro lado e vi você ali, sempre ali, sempre meu. Me acostumei, ao passar dos dias, com aquela imagem, aquela presença segura sempre ao meu alcance, sempre fácil, sempre minha. E quando, por ventura, olhei e não mais te vi, veio depressa o desespero e o medo, aquele aperto sem abraço, aquele vento sem perfume. E quando por fim admiti a inegável derrota foi que a mais cruel das sentenças se abateu sobre mim. Eu estava só outra vez – mais uma vez – condenado a brincar de faz de conta com minha coleção de solidões, com minha canastra de escuridões e brinquedinhos cinzentos, como se a criança que existe dentro de mim ainda estivesse viva.
Doravante, por mais que meu berço de sonhos escuros tenha tornado a desfalecer ao meu redor, as lágrimas que eu deveria chorar azedaram-se todas nas calhas dos meus olhos devido ao calor, mormaço que me fazia suar e sorrir para não derramar lágrimas talhadas de decepção. O grito que eu deveria soltar morreu antes que me chegasse à garganta, e eu nunca pude saber se seria um urro de sofrimento ou um “eu te amo” lançado ao céu. E se era o sol ou o ciúme os responsáveis por me ferver o sangue, nunca descobri, mas talvez você tenha um bom palpite.
Palpitantes foram os soluços que me levaram aos tropeços de volta para casa, carregando na sola dos pés a sujeira da rua e a maldição de um homem fadado a caminhar sozinho, com os olhos sempre voltados para um futuro bonito que parece não chegar nunca. Mais duro que ser rejeitado por alguém que não consegui conquistar é ver ir embora aquele que me beija em sonhos e que me encara com olhos de paixão. Há algo de muito errado nisso, errado demais, triste demais, covarde demais.
Desventurados aqueles que deixaram seus corações a mercê do medo, e que fizeram do medo um teto sob o qual morar. Infelizes daqueles que abandonaram suas juras de amor ao desdém do silêncio, e que fizeram do silêncio um túmulo sob o qual dormir. Desgraçado daquele que me roubou seu toque aquecido, seu sorriso sincero, seu coração de menino. Pois suas cantigas e cirandas agora são dançadas e cantadas com outro, com outros brinquedos mais coloridos que os meus, gargalhadas mais sinceras que as minhas, num fabuloso jardim onde crianças más não brincam.
Reprimir esse amor é como te ver devolver um presente cujo embrulho nunca foi rasgado, como se me retornasse uma carta selada sem que nem ao menos tivessem o esforço de abri-la. Uma linha tênue entre a humildade e a ingratidão foi traçada e eu não sei de que lado ficar. Busco o caminho menos doloroso, mas é difícil prosseguir quando nossos pés já deixaram de sentir o chão ou quando nossos olhos deixaram de acreditar no céu.  A quem presentear, me pergunto, a quem escrever. De que me adianta a poesia se a rejeição se arrasta atrás de mim como uma sombra? Sublimaram-se então cada um dos sentimentos que deveriam ser regurgitados, mas que sempre engoli.
Não quero ser uma lembrança, mas tive de abaixar a cabeça e aceitar o cargo. Já consigo ver os calos que se formam em meu peito a fim de exercer tão desonrosa tarefa, e o suor que embica os vincos do meu rosto escorrendo misturado às lágrimas que reprimi por tanto tempo. Nada mais terrível e poético que ostentar a coroa de um rei deposto e, por mais afáveis que tenham sido as suas palavras, me tornar um pedaço do passado na vida daquele que hoje representa o meu presente. Invernos virão e eu sei que flores nascerão com o passar do tempo, mas talvez essa lembrança primaveril um dia possa ser resgatada. Não se esqueça de nossas flores, meu menino, e volte quando sentir vontade. Talvez eu não esteja mais aqui, admito. Mas talvez, quem sabe, eu ainda esteja. Amo você.