quarta-feira, 26 de março de 2014

Carta de Ingratidão


De todas as maldições que o homem é capaz de rogar, nenhuma tem maior poder que um “obrigado” dito a contragosto. Hoje, porém, no meu mundo onde maldições e bênçãos não existem, desvencilho-me de minhas vontades e venho agradecer cada vintém deste amor hipotecado – pois é amargo o sabor da garantia. São tantas as provas de amor que às vezes, confesso, sinto falta da dúvida, para afirmar e reafirmar que somente as perguntas sem repostas é que cabem a mim. As perguntas sem repostas, o futuro sem destino e as palavras desprovidas de verdade.
Ainda assim, te peço, acredite nas mentiras sinceras que ainda tenho a lhe contar. Pois se a realidade é uma questão de ponto de vista, me diga, onde encontrarei a minha se meus olhos estão sempre voltados para a escuridão? Desta vez, vestido de treva, venho despido de vaidades para o nosso solene acerto de contas, uma cerimônia onde os nós na garganta não foram causados pelas gravatas apertadas demais. Palavra por palavra, engasgadas de um jeito que você jamais ouviu, proclamei a saudosa despedida que não tardaria a acontecer, sempre mais cedo do que eu gostaria, sempre mais tarde do que eu deveria. Deveres por deveres, diante todos os que levianamente não cumpri, pela primeira e última e única vez, eis-me aqui lhe dedicando os meus versos satânicos e minha poesia de prazer exultante.
Amo-te, tortuosamente, amo-te! De um jeito torto que só a morte há de endireitar. Pois ainda que a chama da esperança brilhe verde como a faceta fajuta de teus olhos, é negra a bandeira da ingratidão, e com ela eu me rebuçarei no sepulcro. Dentre mortalhas de arrependimentos e lençóis de promiscuidade fui tecendo a colcha de retalhos da cama sobre a qual nunca mais dormiremos juntos, muitíssimo parecida com a que seus familiares ofereceram a mim. Muitos conhecem o anjo de rapina que eu sou em cima de uma cama, não é mesmo? Mas só você sabe dos demônios que me atormentam quando recosto a cabeça sobre o travesseiro.
Mais triste que te ver partir, foi permiti-lo. E por mais que eu tente me envaidecer com mais um troféu para a minha coleção de tristezas, não pude fazê-lo. Em respeito ao orgulho que tanto desprezas, amor, resolvi resguardá-lo e tentar retribuir todas as suas lágrimas que foram inutilmente derramadas por mim. Ah, que linda inundação seria! Mas os meus olhos, como é de costume, secaram com a mesma rapidez de uma chuva de verão sobre o asfalto, e eu pude ver evaporar as esperanças de construir um futuro bonito ao seu lado, onde os beijos seriam fartos e os gemidos, não tanto.
Doravante, não sei se por amor ou se por excesso de decência, percebi que era um futuro demasiado egoísta para que eu pudesse condenar você. Tão único, tão jovem, tão cheio de alegrias escondidas no próximo passo, na próxima esquina, depois da próxima dose. Obrigo-me a acreditar, num desespero insano de não me sentir tão louco, que de gole em gole você me esquecerá, e que um dia eu serei como o gelo largado no fundo de um copo sujo: uma lembrança gelada de algo bom, mas que já passou. Sei que não será tão simples, acredito que não será tão rápido, mas venho em nome de tudo que não é sagrado lhe implorar que de uma vez por todas engula este amor. Ânsias de vômito virão, é fato, mas acredite, antes a ânsia que a overdose.
Chores, amor, deságües, pois lágrimas azedadas não cheiram muito bem. E o odor de fracasso que acompanha aqueles de olhos interditados não combina com você, sempre tão cheiroso, como um botão colhido no orvalho da manhã. Entre flores e dores, peço que veja nestas palavras os ramalhetes que nunca lhe presenteei, e que sejam vingadas todas as feridas que não te deixaram desabrochar. Pétalas caídas não fazem ruído, mas, por favor, não deixe o teu silêncio despetalar a flor de amizade que ainda existe entre nós. Sei que esta roseira ainda demorará a vingar, mas um dia ela fará sombra para que muitas histórias como a nossa sejam contadas. Sim, sob a roseira da amizade, sob os espinhos do esquecimento, um dia sorriremos ao lembrar deste triste conto de amor. E nos obrigaremos a lembrar que o amor – Ah, o amor – o amor não é tudo.