domingo, 10 de junho de 2012

Minha Lua



A lua que te ilumina
Não é a mesma alva carnificina
Que resplandece meu anoitecer

Pois tenho de confessar
Que a beleza do meu luar
É apenas o sol disfarçado de escuridão

Sempre, então, que o sol se deita
Evoco os deuses de minha seita
Que cultua apenas meu próprio umbigo

Às vezes, porém, não consigo
Renegar o ardor do inimigo
Que intumesce meu coração

Os outros são o meu inferno
Quando a força de um amor tão terno
Arrefece as vísceras dentro de mim

E o sangue percorre finalmente
A pobreza não tão inocente
De minhas rimas foscas e luarentas

Tais palavras de queixume
Céticas, alcançam o cume
De um inalcançável Olimpo sem fé

Não alcançam, no entanto
Nem de leve, nem quebranto
A profundeza dos seus olhos cansados

E o meu amor só se solida
Quando a lua tão esquecida
Conquista um beijo ardente do sol

Tal beijo, no entanto, jamais se consuma
Nem mesmo quando a mágica da bruma
Amarra os corações dos incrédulos

E de quebra me amaldiçoa a vida
E recende o odor da ferida
Ferida aberta para o luar entrar
  
Acontece que a lua é trapaceira
Pois mesmo quando sem eira nem beira
Sabe como pechinchar um romance
  
Mas como disse, eu não tenho chance
Pois minha esperança é apenas um relance
E minha lua é só o sol disfarçado de escuridão.

domingo, 3 de junho de 2012

Beijo na poeira



Era dia. O sol me dava um tapa de ardor na nuca, como se me alertasse: “A vida passa”. Por hora entorpecido pela umidade e pelo calor, me flagrei indagando enquanto caminhava: “Se a vida passa, o que faz a morte? Estagna-se?” A resposta chegou num carro branco, cuja lataria incandescia em tom de ameaça, empoeirada pela fuligem inodora do capitalismo. Mais quente que o sol, ou a lataria ou o mormaço, somente o olhar do motorista que, suado, me observava lá de dentro.
Ressalvo: este é uma fábula urbana, portanto, em nome da urbanidade, constato: Flores só detém poesia quando florescem em abundância. Uma flor nascida num vaso é como um pássaro trancafiado numa gaiola. Eis o que sou, se me permitem o lirismo, uma flor que desabrocha solitária. Podada e inócua, regada pela monotonia autoritária do dia a dia, alimentada pelo lusco-fusco pálido da luz de uma janela, uma beleza contemplativa, não mais que ornamental. Queria eu ser uma rosa nascida no asfalto. Pisoteada e esquecida, eu sei, mas ao menos tocada. Adorada em sua insignificância.
Mas tal como o asfalto persiste desflorado, o carro branco persistiu parado ao meu lado. O motorista, porém, quebrara por fim o silêncio preenchido somente pelo ronco do motor e me convidara, ainda com os olhos incandescidos de malícia, a entrar e sentar. João era seu nome, talvez Luís, talvez Marcos, e talvez nem o tenha me dito e eu tratei de inventar. É uma mania, sabem, tapar com sonhos os buracos da realidade. Os sonhos, no entanto, não taparam buracos, muito pelo contrário, tornara-os mais profundos.
O beijo do motorista era tão indizível quanto o seu nome, e o seu corpo era ainda mais ardente que seu olhar. Já os buracos do asfalto não eram tão profundos quantos os meus, assim como nenhuma sugestividade é tão gritante quando a minha. Desarmado, me prostrei perante a adrenalina do proibido e deixei que perigo se apoderasse de mim feito orgasmo, feito medo, e feito luto. Mortos estavam todos os que um dia caminharam sobre o mesmo sol escaldante que o meu, os que tropeçaram nos mesmos buracos que eu, e os que floresceram na mesma terra que a minha. Pois a morte jamais se estagna, descobri por mérito da loucura, ela apenas dança no mesmo lugar, num lugar chamado destino, num destino chamado João. Ou Luís. Ou Marcos. Ou Sonho.
No banco do carro deixei meu telefone, meu endereço e minha dignidade, e subi aos trancos e barrancos por uma escada tão alta quanto meu ego e tão suja quanto meu coração, como se cada estalar do delicioso beijo houvesse me embriagado como um copo de cachaça. E sem ao menos olhar pra trás para anotar a placa do carro ou cor dos olhos daquele homem tão sisudo, prossegui escada a dentro rumo às luzes alucinógenas de um mundo que me pertencia, mas de uma alegria forjada que não era só minha. Outrora sóbrio, então, extraí da ebriedade estas palavras bonitas e escrevi uma fábula urbana onde tanto a introdução, enredo ou desfecho, não passavam de um beijo num carro branco e empoeirado.