Era dia. O sol me dava um tapa de ardor na nuca, como
se me alertasse: “A vida passa”. Por hora entorpecido pela umidade e pelo
calor, me flagrei indagando enquanto caminhava: “Se a vida passa, o que faz a
morte? Estagna-se?” A resposta chegou num carro branco, cuja lataria
incandescia em tom de ameaça, empoeirada pela fuligem inodora do capitalismo.
Mais quente que o sol, ou a lataria ou o mormaço, somente o olhar do motorista
que, suado, me observava lá de dentro.
Ressalvo: este é uma fábula urbana, portanto, em
nome da urbanidade, constato: Flores só detém poesia quando florescem em
abundância. Uma flor nascida num vaso é como um pássaro trancafiado numa gaiola.
Eis o que sou, se me permitem o lirismo, uma flor que desabrocha solitária.
Podada e inócua, regada pela monotonia autoritária do dia a dia, alimentada
pelo lusco-fusco pálido da luz de uma janela, uma beleza contemplativa, não mais
que ornamental. Queria eu ser uma rosa nascida no asfalto. Pisoteada e esquecida,
eu sei, mas ao menos tocada. Adorada em sua insignificância.
Mas tal como o asfalto persiste desflorado, o carro
branco persistiu parado ao meu lado. O motorista, porém, quebrara por fim o
silêncio preenchido somente pelo ronco do motor e me convidara, ainda com os olhos
incandescidos de malícia, a entrar e sentar. João era seu nome, talvez Luís,
talvez Marcos, e talvez nem o tenha me dito e eu tratei de inventar. É uma
mania, sabem, tapar com sonhos os buracos da realidade. Os sonhos, no entanto,
não taparam buracos, muito pelo contrário, tornara-os mais profundos.
O beijo do motorista era tão indizível quanto o seu
nome, e o seu corpo era ainda mais ardente que seu olhar. Já os buracos do
asfalto não eram tão profundos quantos os meus, assim como nenhuma sugestividade
é tão gritante quando a minha. Desarmado, me prostrei perante a adrenalina do proibido
e deixei que perigo se apoderasse de mim feito orgasmo, feito medo, e feito
luto. Mortos estavam todos os que um dia caminharam sobre o mesmo sol escaldante
que o meu, os que tropeçaram nos mesmos buracos que eu, e os que floresceram na
mesma terra que a minha. Pois a morte jamais se estagna, descobri por mérito da
loucura, ela apenas dança no mesmo lugar, num lugar chamado destino, num
destino chamado João. Ou Luís. Ou Marcos. Ou Sonho.
No banco do carro deixei meu telefone, meu endereço
e minha dignidade, e subi aos trancos e barrancos por uma escada tão alta
quanto meu ego e tão suja quanto meu coração, como se cada estalar do delicioso
beijo houvesse me embriagado como um copo de cachaça. E sem ao menos olhar pra
trás para anotar a placa do carro ou cor dos olhos daquele homem tão sisudo,
prossegui escada a dentro rumo às luzes alucinógenas de um mundo que me
pertencia, mas de uma alegria forjada que não era só minha. Outrora sóbrio,
então, extraí da ebriedade estas palavras bonitas e escrevi uma fábula urbana
onde tanto a introdução, enredo ou desfecho, não passavam de um beijo num carro
branco e empoeirado.
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