sexta-feira, 2 de março de 2012

Brisa ao crepúsculo



Um dia, sentado na varanda, talvez no ontem, talvez no amanhã, ouvia eu uma música melodiosa que trovava histórias de um inesquecível mundo de lá. Embevecido, observei de olhos aguados as verdades trazidas pela brisa ao crepúsculo, singela ventania que afagava as folhas das árvores que na época cresciam na porta de minha casa, fazendo-as dançar como o lenço de uma donzela em despedida.
Aquela música, assim como outra qualquer, me trazia lembranças suas, ora, pois mesmo morto eras tu para mim a única memória viva. E as trocistas histórias de um mundo de lá eram por verdade os indizíveis causos de um mundo seu, fabulosos sortilégios de um mundo seu,  cujo meus pés pisaram o chão um dia, porém, não mais. Nunca mais.
Agora, pois, ouço em cada nota o tilintar de uma lágrima que se quebra, e em cada verso escuto as promessas vazias advindas de vozes ininteligíveis, aliás, de bocas e lábios ininteligíveis, inexistentes e distantes como as vozes d’Ele ou d’Outro qualquer. E, como que por consolo, ou talvez para me escarnecer, vislumbro agora em cada folha que balança uma mão calejada dançando a valsa do adeus.
Tristeza maior se solida quando o vento freia e a música silencia. E as folhas bailarinas, então, jazem inertes, mortas, afrontando as metáforas que outrora proclamei. O silêncio, por sua vez, faz-se ainda capaz de carregar os ecos daquela doce canção, sim, pois somente o silêncio tem a voz cujo todo ouvido é capaz de ouvir.
É tão estranho, pois não? Flagrar-me sentado à porta de casa, envolto por uma calmaria que parece não me pertencer. Vento e música, nem mesmo na ternura dos sonhos eles têm o costume de me visitar. É tão engraçado, talvez assustador, perceber que as árvores cresceram sem que eu as regasse, que os verões e invernos passaram sem que eu os festejasse, que as pessoas cresceram e envelheceram sem que eu ao menos as amasse.
É complicado. Não sei se fui que ousei ultrapassar as barreiras do tempo ou sei foram os relógios que me abandonaram nas revalescências do passado. O pouco que sei é que, agora que você se foi, nem à minha frente nem às minhas costas existe alguém a quem gritar por ajuda. Dentro de mim, talvez, ainda haja, mas o talvez nunca me fora uma palavra que soasse convidativa. Acima de mim, a inexistência de Deus. Abaixo, todo o resto. À direita e à esquerda, aqueles por quem ainda tenho apreço. E nas ilusórias fronteiras dentre essas dimensões, meus sonhos e minhas poesias, todas dedicadas a ti, imbatíveis e inomináveis.
Inominável é o vazio que assola meu peito, me fazendo proferir palavras que não convinham ser lidas por olhos humanos. Temo feri-los. Temo abri-los. As feridas, porém, gangrenam-se trazendo à tona o cheiro da desgraça, invalidando as vistas e reavivando o coração. Ora, pois somente a dor é capaz de autenticar a vermelhidão da carne e provar que não existem brisas crepusculares correndo pelas artérias e resfolegando pelo coração. Só mente o sangue prova a existência da vida, assim como somente uma ferida pode revelar o que um homem é por dentro. No entanto, são poucos os que sabem que ainda mais doloroso que sanar uma ferida é sobreviver a ela. Pois pior que um cão que ladra, mas não morde é um cão que morde, mas não mata. Mais triste que o amor que sinto por ti é saber que sobreviverei a ele.
Sei que nem a música nem a brisa e nem a poesia detém o poder de fechar tais feridas, mas as lágrimas por elas provocadas talvez o tenham, talvez o façam. Sentar à varanda e contemplar o balé das árvores não me trará descanso, mas ao menos sei que a morte também não o trará. Culpar a Deus ou acusar o tempo não me fará justiça, mas a justiça além de cega também é surda, possivelmente muda, portanto me deixem praguejar em paz.
Quero apenas ser humano, louco, hipócrita e apaixonado. Ferir e ser ferido, amar e não ser amado, ser amado e não e amar, e em algumas poucas vezes me deliciar na sombra da reciprocidade. Quero jurar amores que findarão antes que o sol amanheça, assim como quero amanhecer sem ter que jurar o meu amor. Quero ser igual sem ter que lutar por igualdade, e na maldição da liberdade me fazer superior. Nada sou, ninguém é, e assim me vejo no direito de ser o que ou como quiser. Pois pouco importa a casa onde você mora, a textura do seu cabelo ou a cor da sua pele: dentro do peito o coração é vermelho, e as entranhas fedem. 

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