quarta-feira, 14 de março de 2012

O Pantomimeiro


Despertei. De uma noite cujo sonho não me lembro, lavando os olhos com águas felicitadas, sonolentas, remeladas e embebecidas de amor. Carregava nas pálpebras, fundas, maquiadas e escurecidas, a vaidade viçosa da idade dos príncipes e o peso modorrento da servidão dos parvos, dos bobos oriundos das cocheiras fétidas que ora crescem, ora se reinventam, a fim de lograr-se nas gargalhadas e lágrimas da realeza. Real era, pois, o sangue que lhe engarrafava o trânsito das veias, saudavelmente batizado com cachaça e uma boa dose das indecências hormonais, naturalmente, como é de praxe para um rapaz tão moço.
O parvo troçador era eu, admito. Já o rapazote, há tempos abandonado fora nas recrudescências da memória humana, deixando que somente a troça, a cachaça e a indecência ponderassem sobre meu espírito ancião, dicotomicamente encarnado neste corpo tão faceiro, tão juvenil. Ardiloso, na ponta dos pés, como fazem os bailarinos, puleguei então de coração em coração na busca por aquele que capacitado fosse de sustentar o meu balé banhado em volúpia, fazendo de cada pulsação cardíaca uma batida do melodioso trinado da suposta paixão, visualizando em cada um deles um ilutópico tablado de ripas vermelhas, um palco imaculado encerrado por cortinas escarlates cheias de promessas, sobre os quais eu estrelaria, lindo e resplandecente.   
Sob a sinuosidade dos meus pés, porém, os corações se desfaleceram revelando as valas escurecidas que por verdade eram, não um palco, mas calabouços sem fundo nos quais caí e me feri mortalmente. Gangrenadas, por fim, as feridas se tornaram troféus cujas sombras me faziam ora abrigo, ora cárcere, impedindo que as luzes do teatro me alumiassem outra vez. Cansado estava eu de ser um personagem cujo desfecho era uma farsa, um bufão. Temia outra vez submeter-me marionético nas mãos de um mimetista e, depois que a cortina se fechasse, ser embolado e largado na coxia mais escura. Minhas sapatilhas foram guardadas. Minhas maquiagens foram lavadas. Meus instrumentos desafinaram e enferrujaram. E eu me tornei duro, pálido, silencioso e sem sorrisos.
Eis que um dia, no entanto, o destino traiçoeiro me suspende pelas costas, como que num ventríloquo de realejo, materializando em minha frente a malícia dilaceradora de um par de olhos verde-vivos, coloridos pela esperança que a tempos me abandonara. E foram estes mesmos olhos que, mesmo sem tinta, música ou poesia, conseguiram enxergar no fundo do meu olhar desentristecido a máscara do palhaço, acintosamente desenhada, marcada a fogo e aplauso nas janelas da alma que preenche a ressonância oca do meu peito. Preenchidos foram todos os desejos e fissuras do meu corpo, pois as valas escuras não mais careciam de preenchimento, foram todas esquecidas, recrudescentes e imemoráveis.
Pois as memórias que hoje me visitam, espetaculosas, são as daquelas noites em que trocei sorrisos e juras naqueles olhos admiradores, deliciando-me integralmente nas mãos de um autêntico apreciador. Deixei, e sempre deixarei, que se faça espectador de minhas mágicas e sortilégios, que seja sempre o enamorado de minhas poesias e falácias declamativas, e que, lado a lado, ensaiemos juntos, sempre juntos, objetivando a perfeição inalcançável, mas que seja um inalcançável alcançado nos sorrisos um do outro, em cada um dos versos que hão de ser silenciados por beijos novelísticos. Para que a maquiagem nunca derreta, para que a música nunca se cale, para que a cortina nunca se feche. Pois o alimento do artista é o aplauso, mas nunca, em tempo ou lugar algum, outras mãos me aplaudiram tão vigorosamente como as tuas. 

segunda-feira, 12 de março de 2012

Verbosidade Esverdeada


É engraçado. Às vezes, na verdade muitas vezes, parece que eu me esqueço de olhar para o céu. Deveria, se não para orar ou agradecer, ao menos para me certificar de sua existência ou para averiguar se, por ventura, assim como no meu esquecimento, ele tenha talvez se esquecido de amanhecer azul. Mas a aura anilada e anilhaçada do universo continua sempre pairando sobre a cabeça dos amnésicos, como eu, inspirando as apaixonadas poesias, como as minhas, e toldando as carícias das provenientes paixões, como a nossa.
É sempre tão azul, como se para enfatizar a verbosidade esverdeada dos teus olhos, dois gudes esmeraldinos perscrutando até a última doçura do mel que colore o meu olhar, escandindo cada uma das mentiras que nunca foram proclamadas. Ora, pois somente a verdade reinou entre nós, magnífica, imperando como uma rainha singela e inexpugnável. Já que é sempre tão verde, de um verde tão vigoroso, que carrega em seus vislumbres a experiência das rameiras do norte e as jovialidades das parreiras do sul. Ao leste e ao oeste, porém, era o vigor dos teus braços que me envolvia, laço arrebatador cujo nó era acintosamente tecido por fiapos de noite, tingido pelas várzeas fálicas do desejo e descosido pela agulha intumescida da paixão.
Apaixonado foi o intumescimento primeiro, uno e derradeiro, proferindo junto aos meus gemidos juras de amor que jamais hão de ser conspurcadas. Conspurcado foi intento ardiloso que de boa vontade me fez possuído pela rudeza dos seus dedos calejados e aquecidos, como é do meu agrado. E então, sentado, fiz do teu colo dominador o meu trono, minha cela de estribos invisíveis e indizíveis, me levando a galope até a planície mais sublime do seu coração, esmiuçando cada gota viscosa do seu inócuo prazer.
Já o meu, digo, o coração, alucinou-se ao testemunhar o quão linda e providentemente as sucessões foram se sucedendo, cada coisa ao seu devido e indevido tempo, naturalmente, como uma flor que desabrocha desesperada, no entanto sem pressa. Tenro como só o amor sabe ser, apreciando o valor de cada olhar, de cada suspiro e de cada cor. O azul eterno do céu estrelado, a ênfase esverdeada dos olhos aguados, o arroxeado dos lábios beijados, a brancura indecente da pele e a transparência do suor orvalhado pelos nossos corpos desnudos, umidificando as vistas e embaçando as janelas.
E as janelas, traiçoeiras, mostraram-me de um ângulo inconcusso a resplandescência enegrecida de um céu que por vezes me esqueci de olhar, tão plácido, tão faceiro. Um céu cujo horizonte não me era visível, pois nas na fronteira do meu olhar pensativo só se vislumbrava seu nome. E as estrelas e a lua, outrora tão abandonadas, ganharam hoje em meu peito uma nova significação, por que agora eu tenho, quando olhar para elas, alguém em quem pensar e lembrar. E fazer que essa lembrança transcenda as fronteiras da distância, para que eu seja sempre seu e você seja sempre meu, até o nosso sempre durar. 

quinta-feira, 8 de março de 2012

A Falácia do Eunuco


Eu me lembro de quando as mulheres
Ainda versavam minha pobre rima
Pois hoje em repugno aos lábios de baixo
Dispenso os beijos dos lábios de cima

Ora, por mais que os ventres do Éden oriundos
Fizeram-me um dia caviloso prisioneiro
Não me sucedo às várzeas da fenda tão fecunda
Pois nunca fui cativo que honrasse o cativeiro

Confesso, já provei a doçura da carícia alilasada
Mas somente o suor, sal irídio do oceano
Tal como a aspereza da areia marejada
Detêm o calor que me arrefece
Outrora intumesce
Meu corpo insano
Pobre falo diocesano
E esta ferida arroxeada

Sim, eu já me deitei com elas
Mas a cama d’eles me foi mais convidativa
Tal como uma donzela
Abri-me à falácia da goela
 Como se aquela
Sinuosa e esquiva
Moça inepciosa, tão bela
Possuísse-me, impugnativa

Festejo pelas núpcias
Que nunca serão consumadas
Das ancas, ao contrário das minhas, tão súcias
 Inexpugnavelmente seladas

Seladas foram quaisquer possiblidade de abrasão
Que me alcance por afeminado intento
Deflorados já foram meus selos pelo alazão
Que me conspurcara num fraquejo tão sedento

Valha-me, clitóris que uma só vez me aninhou
No primogênito e inócuo rebento
Socorrido no conspurco aqueijoado
Por másculas mãos afagando meu alento

Alenta-me, então, mãos de mulher
Como boas amigas, companheiras de caça
Pois se o desejo por ti ainda me convier
Juro, cairei em desgraça

sexta-feira, 2 de março de 2012

Brisa ao crepúsculo



Um dia, sentado na varanda, talvez no ontem, talvez no amanhã, ouvia eu uma música melodiosa que trovava histórias de um inesquecível mundo de lá. Embevecido, observei de olhos aguados as verdades trazidas pela brisa ao crepúsculo, singela ventania que afagava as folhas das árvores que na época cresciam na porta de minha casa, fazendo-as dançar como o lenço de uma donzela em despedida.
Aquela música, assim como outra qualquer, me trazia lembranças suas, ora, pois mesmo morto eras tu para mim a única memória viva. E as trocistas histórias de um mundo de lá eram por verdade os indizíveis causos de um mundo seu, fabulosos sortilégios de um mundo seu,  cujo meus pés pisaram o chão um dia, porém, não mais. Nunca mais.
Agora, pois, ouço em cada nota o tilintar de uma lágrima que se quebra, e em cada verso escuto as promessas vazias advindas de vozes ininteligíveis, aliás, de bocas e lábios ininteligíveis, inexistentes e distantes como as vozes d’Ele ou d’Outro qualquer. E, como que por consolo, ou talvez para me escarnecer, vislumbro agora em cada folha que balança uma mão calejada dançando a valsa do adeus.
Tristeza maior se solida quando o vento freia e a música silencia. E as folhas bailarinas, então, jazem inertes, mortas, afrontando as metáforas que outrora proclamei. O silêncio, por sua vez, faz-se ainda capaz de carregar os ecos daquela doce canção, sim, pois somente o silêncio tem a voz cujo todo ouvido é capaz de ouvir.
É tão estranho, pois não? Flagrar-me sentado à porta de casa, envolto por uma calmaria que parece não me pertencer. Vento e música, nem mesmo na ternura dos sonhos eles têm o costume de me visitar. É tão engraçado, talvez assustador, perceber que as árvores cresceram sem que eu as regasse, que os verões e invernos passaram sem que eu os festejasse, que as pessoas cresceram e envelheceram sem que eu ao menos as amasse.
É complicado. Não sei se fui que ousei ultrapassar as barreiras do tempo ou sei foram os relógios que me abandonaram nas revalescências do passado. O pouco que sei é que, agora que você se foi, nem à minha frente nem às minhas costas existe alguém a quem gritar por ajuda. Dentro de mim, talvez, ainda haja, mas o talvez nunca me fora uma palavra que soasse convidativa. Acima de mim, a inexistência de Deus. Abaixo, todo o resto. À direita e à esquerda, aqueles por quem ainda tenho apreço. E nas ilusórias fronteiras dentre essas dimensões, meus sonhos e minhas poesias, todas dedicadas a ti, imbatíveis e inomináveis.
Inominável é o vazio que assola meu peito, me fazendo proferir palavras que não convinham ser lidas por olhos humanos. Temo feri-los. Temo abri-los. As feridas, porém, gangrenam-se trazendo à tona o cheiro da desgraça, invalidando as vistas e reavivando o coração. Ora, pois somente a dor é capaz de autenticar a vermelhidão da carne e provar que não existem brisas crepusculares correndo pelas artérias e resfolegando pelo coração. Só mente o sangue prova a existência da vida, assim como somente uma ferida pode revelar o que um homem é por dentro. No entanto, são poucos os que sabem que ainda mais doloroso que sanar uma ferida é sobreviver a ela. Pois pior que um cão que ladra, mas não morde é um cão que morde, mas não mata. Mais triste que o amor que sinto por ti é saber que sobreviverei a ele.
Sei que nem a música nem a brisa e nem a poesia detém o poder de fechar tais feridas, mas as lágrimas por elas provocadas talvez o tenham, talvez o façam. Sentar à varanda e contemplar o balé das árvores não me trará descanso, mas ao menos sei que a morte também não o trará. Culpar a Deus ou acusar o tempo não me fará justiça, mas a justiça além de cega também é surda, possivelmente muda, portanto me deixem praguejar em paz.
Quero apenas ser humano, louco, hipócrita e apaixonado. Ferir e ser ferido, amar e não ser amado, ser amado e não e amar, e em algumas poucas vezes me deliciar na sombra da reciprocidade. Quero jurar amores que findarão antes que o sol amanheça, assim como quero amanhecer sem ter que jurar o meu amor. Quero ser igual sem ter que lutar por igualdade, e na maldição da liberdade me fazer superior. Nada sou, ninguém é, e assim me vejo no direito de ser o que ou como quiser. Pois pouco importa a casa onde você mora, a textura do seu cabelo ou a cor da sua pele: dentro do peito o coração é vermelho, e as entranhas fedem.