Despertei. De uma noite cujo sonho não me lembro, lavando os olhos com águas felicitadas, sonolentas, remeladas e embebecidas de amor. Carregava nas pálpebras, fundas, maquiadas e escurecidas, a vaidade viçosa da idade dos príncipes e o peso modorrento da servidão dos parvos, dos bobos oriundos das cocheiras fétidas que ora crescem, ora se reinventam, a fim de lograr-se nas gargalhadas e lágrimas da realeza. Real era, pois, o sangue que lhe engarrafava o trânsito das veias, saudavelmente batizado com cachaça e uma boa dose das indecências hormonais, naturalmente, como é de praxe para um rapaz tão moço.
O parvo troçador era eu, admito. Já o rapazote, há tempos abandonado fora nas recrudescências da memória humana, deixando que somente a troça, a cachaça e a indecência ponderassem sobre meu espírito ancião, dicotomicamente encarnado neste corpo tão faceiro, tão juvenil. Ardiloso, na ponta dos pés, como fazem os bailarinos, puleguei então de coração em coração na busca por aquele que capacitado fosse de sustentar o meu balé banhado em volúpia, fazendo de cada pulsação cardíaca uma batida do melodioso trinado da suposta paixão, visualizando em cada um deles um ilutópico tablado de ripas vermelhas, um palco imaculado encerrado por cortinas escarlates cheias de promessas, sobre os quais eu estrelaria, lindo e resplandecente.
Sob a sinuosidade dos meus pés, porém, os corações se desfaleceram revelando as valas escurecidas que por verdade eram, não um palco, mas calabouços sem fundo nos quais caí e me feri mortalmente. Gangrenadas, por fim, as feridas se tornaram troféus cujas sombras me faziam ora abrigo, ora cárcere, impedindo que as luzes do teatro me alumiassem outra vez. Cansado estava eu de ser um personagem cujo desfecho era uma farsa, um bufão. Temia outra vez submeter-me marionético nas mãos de um mimetista e, depois que a cortina se fechasse, ser embolado e largado na coxia mais escura. Minhas sapatilhas foram guardadas. Minhas maquiagens foram lavadas. Meus instrumentos desafinaram e enferrujaram. E eu me tornei duro, pálido, silencioso e sem sorrisos.
Eis que um dia, no entanto, o destino traiçoeiro me suspende pelas costas, como que num ventríloquo de realejo, materializando em minha frente a malícia dilaceradora de um par de olhos verde-vivos, coloridos pela esperança que a tempos me abandonara. E foram estes mesmos olhos que, mesmo sem tinta, música ou poesia, conseguiram enxergar no fundo do meu olhar desentristecido a máscara do palhaço, acintosamente desenhada, marcada a fogo e aplauso nas janelas da alma que preenche a ressonância oca do meu peito. Preenchidos foram todos os desejos e fissuras do meu corpo, pois as valas escuras não mais careciam de preenchimento, foram todas esquecidas, recrudescentes e imemoráveis.
Pois as memórias que hoje me visitam, espetaculosas, são as daquelas noites em que trocei sorrisos e juras naqueles olhos admiradores, deliciando-me integralmente nas mãos de um autêntico apreciador. Deixei, e sempre deixarei, que se faça espectador de minhas mágicas e sortilégios, que seja sempre o enamorado de minhas poesias e falácias declamativas, e que, lado a lado, ensaiemos juntos, sempre juntos, objetivando a perfeição inalcançável, mas que seja um inalcançável alcançado nos sorrisos um do outro, em cada um dos versos que hão de ser silenciados por beijos novelísticos. Para que a maquiagem nunca derreta, para que a música nunca se cale, para que a cortina nunca se feche. Pois o alimento do artista é o aplauso, mas nunca, em tempo ou lugar algum, outras mãos me aplaudiram tão vigorosamente como as tuas.