Madrugada após madrugada eu tenho tido o mesmo sonho. Estou caminhando pela rua, rumo a um destino que eu me lembro e que se solida insistente como o primeiro plano dos meus pensamentos, mas que, acovardado, prefiro não comentar. Sou sonhador o suficiente para entender que falar das coisas as fazem parecer mais reais, o que, por verdade, elas não são. No entanto estas empíricas utopias se repetem a cada vez que me deito, e eu tenho a certeza de que só me abandonarão quando eu aceitar por fim me deitar à eternidade. Mas enquanto vivo, ei-las.
Como dito, eu caminho pela rua pisoando um destino indizível. Faz-se dia. Mesmo assim, num determinado ponto do percurso eu olho para o alto e me assusto ao perceber que há um sol lá em cima. Mas o que me assusta não é a visão de um sol lá em cima. Assusto-me, porém, por ter me assustado ao ver um sol lá em cima. Entende? Não é o medo do amor, é o medo de ter medo do amor. Não é temer a morte, é ter medo de seu respectivo temor. Não é ter medo do futuro, é temer teme-lo. É o medo de já estar temendo aquilo que um dia jurei amar.
O medo, então, aliado à petulância, goza de mim escarnecendo uma máscara de triunfo. Eu, humilde como sou, abstenho-me em abaixar os olhos, ignorando o sol do inverno, e caminhando veemente rumo ao indizível, outrora dito, outrora esbravejado. Outrora, porém, nunca aconteceu: estamos tratando de sonhos e sonhos não tem passado nem futuro, não há ontem ou amanhã, não há além ou outrora. Há somente o milésimo de segundo entre o despertar e o adormecer. E talvez nem isso. E talvez isso tudo.
Na veemência dos olhos baixados, encaro não mais ao sol, mas sim às superfícies por ele iluminadas. Vejo flores que brotam no asfalto assim como vejo o sangue que brota das flores. É tão poético, não é? Tudo há de ter sua feiura para que o belo tenha destaque. É tudo muito providente, fazendo-me quase acreditar em Deus. Note o asfalto de um negro tão profundo que só está ali para que a brancura vívida dos meus graciosos pés ganhe ênfase na luz do sol invernal. Observe a luminosidade tristonha que só se resplandece para que minha silhueta esguia seja recordada em forma de sombra. Repare nos homens que transitam pelas calçadas, eles só caminham por estas bandas para que haja alguém a me admirar. Olhe só como é poderoso o meu ego, ele se expande a cada manhã para que a escória da humildade não tenha vez. Ela fede.
O que me resta, e acho que disso eu sempre soube, é não mais deixar os olhos se distraírem com o sol ou com o chão. É olhar em frente, sempre em frente, como se a vida se chamasse retidão. E mesmo sem deixar de ser tortuosa, escolher a cada manhã uma nova linha reta sobre a qual se equilibrar. É picotar distâncias e contar o tempo em metros, abreviar lonjuras e medir o mundo em litros. Angariar verdades e reciclar certezas. Abandonar os ócios e celebrar belezas. E fazer da realidade um sonho que nunca adormeceu. Estes restos, estas vontades, estas belezas, porém, me são impossíveis. Mesmo no mundo dos sonhos, intangível, incogitável, intransponível.
Pois dia após dia eu tenho tido a mesma vida. Estou caminhando pela rua, rumo a um destino que eu já esqueci, mas que de quando em quando se permuta na frente destes olhos corajosos demais para se amedrontarem com a iminência do futuro que nunca chega. Sou realista o suficiente para perceber que falar das coisas as fazem parecer mais reais, mas que, por verdade, só parecem. No entanto, essas inúteis epifanias se repetem a cada vez que eu me levanto, e eu tenho a certeza de que só me abandonarão quando eu por fim plantar os pés na realidade. Mas enquanto durmo, ei-las.