O nome disso é tristeza. Não há por que ou como negar. A negação é o mote da ignorância, e de ignorável nesta terra basto eu. Mas o que realmente me destrói não é este meu senil entristecer, pois depois de me conformar com as lágrimas elas se tornaram grandes amigas, chamo-as pelo nome. Inconcebível é saber que os pássaros lá fora ainda voam e, como se já não bastasse, eles cantam. Tal que não é uma afronta descabida? Como podem, assim, deliberadamente abrir as asas e se lançar numa liberdade tão afroditosamente linda? Sem ao menos pestanejar, tampouco me encorajar. Sem perceber que o que pra uns é música para outros pode ser ruído e que, para mim, era o mais puro e vertiginoso silêncio.
A vertigem dos céus. O silêncio dos Deuses. A música dos mortos. E o ruído cadavérico dos órgãos implodindo de encontro ao chão. Chão que nunca me fizera tão sólido quanto um dia fizeram as nuvens que maliciosamente me chamavam. Vide em paz – solfejavam elas – e que Zeus lhe acompanhe sempre. Das mãos do Grande, porém, nenhum relâmpago atendeu ao meu clamor. Ora, clamor dos tolos, aprisionável pelos limites frágeis da ionosfera. Ornando a fera, celestial arcanjo de rapina. Feito menina, sonhando com as ninfas helíades que sabiam voar.
E minhas lágrimas, saudosas águas fraternais, fizeram-se vaporosas como minhas últimas companheiras, umedecendo os meus lábios açoitados pelo vento e me permitindo proclamar uma última maldição, um último reverbério de amor. Malditos sejam os homens, tal como seus falos ajumentados, que regaram dentro de mim os devaneios desejosos em me enfunar pelos céus, em me levar às estrelas, em me pederastir e me travestir no serafim efeminado em que me transformei. Fiz-me Antusa, Oráculo das orodeminíadas. Fiz-me Oréada, Rainha Efidríade do Vento Norte. E a morte, amada enteada do submundo, reverenciou meus pés chagados antes de me carregar consigo em seu manto de temor.
Temorizado, embrulhei-me na mortalha enregelada e aceitei passivamente a morte que me abarcou súbita e indolor, banhando-me no conforto paradisíaco da inexistência. Mas então, como que num milagre, o inexistir se dissolveu e a atmosfera se fez palpável entre os dedos das minhas mãos e eu pude afinal galgá-la como que uma fada que decola por um jardim. A flores, no entanto, eram desenhadas pelos torvelinhos do vento e os perfumes tinham cheiro de alegria, sepulcral alegria. O que me restou a fazer foi recolher um ramalhete de flores intangíveis e oferta-las à imensidão, em tom de agradecimento.
Agradeço copiosamente àqueles que me furaram as pupilas antes mesmo que as luzes do sol se dispusessem a perfurar. Por sua vez, a cegueira dos curiosos foi quem me fortaleceu, despontando de minhas espáduas asas douradas que os olhos não podiam ver. Hoje, por mais que minhas vísceras tenham um dia forrado o chão sobre o qual caminham, saibam que continuo voando. Plainando ao redor daqueles que me condenaram e espetando os olhos dos que carregam o sangue dos meus condenadores. Lustrando os vitrais da abóbada celeste. Dançando o balé das brisas mansas. Aguaritando o céu que ganhei de presente. Voando, bebendo e cantando. Eternamente.
Seu lindo, seu lindo... Cada texto seu é uma coisa mais inacreditável e instigante... Instigante...!!
ResponderExcluirOs pássaros também nos invejam. Ou acha que eles nao se enfurecem por vê-lo aos beijos? Pobre e inocente Ícaro. Lindo texto.
ResponderExcluirem cada texto que leio seu eu encontro meu divã!
ResponderExcluirSilenciando anjos de rapina, fortalecido pelas perfurações que te fazem cantar enternamente...Mais um texto lindo Marcos Paulo...obrigado por compartilhar suas condenações. Um bom abraço.
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