Aquele homem não amava, mas beijava como ninguém. A gravata cintilava; o coração, não; a alma, ainda menos. Os passos na pedraria esquecida ecoavam como ecoa a voz de Deus, e arrebatavam tanto quanto. Os anéis em cada dedo ilustravam o matrimônio concebido pela liberdade de nunca se atar, às suas alianças de fumaça, à sua fumaça de tabaco nobre.
A rua pela qual caminhava não era tão escura quanto a realidade, mas as luzes que espocavam eram tão falsas quanto. Letreiros iluminados. Calígrafos garrafais. Ofertavam as pélvis despudoradas de um patife mundo espatifado. Ele, porém, prosseguia em seu trotar lamurioso como se a vida se chamasse retidão. Era uma imagem peculiar, aquele par de pernas ritmadas compassando o tempo que restava. Ele se alimentava de restos.
O resto era eu. O caco trincado da pedraria, a poeira da calçada, a fuligem do asfalto, a fumaça, o fumo, a flor que sobreviveu a isso tudo. Sou a amoreira silvestre que brotou da fenda no chão, e sou a praga que destruiu as amoras. Sou a chuva que lavou as janelas, mas sou também o lodo que se formou no rodapé. Sou o vento que arrepia os cabelos daquele homem desalmado, assim como sou eu quem trás o fedor dessa cidade suja. Sou o fruto do empírico, do causal, do desimportante.
Pois ele não me vê! Toda vez que ele desce a rua minha onírica realidade fica pra trás. Despercebida, insignificante, silenciosa. Minha lamúria se estendeu por sobre os séculos, séculos que começavam numa esquina e terminavam na outra. Quando chegou o milênio e os demônios todos se libertaram do abismo, parei de fronte a rua chapinhada de gente, de cores que eu nunca tinha pintado. Uma esquina de um lado, outra do outro, e exatamente ao meio, eu. Minha gravata cintilava; meu coração, não; Minha alma, ainda menos. Deus ecoou ao meu ouvido como ecoaram os meus passos nunca caminhados. Sim. Eu era um homem que amava, mas não beijava ninguém.
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