terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O último dia do ano


Faltavam três minutos pro último dia do ano quando eu me peguei pensando no que eu faria, no que eu queria e com quem eu estaria naquele mesmo horário do dia seguinte. Sem que me desse tempo de responder a essas melancólicas perguntas, o último dia do ano engoliu meus três minutos de epitáfio e surgiu sem se anunciar ou pedir licença, como se as crises existenciais de um jovem garoto no auge dos vinte anos não tivessem a menor importância. Em algum lugar longe da minha casa, doze badaladas haviam soado sem que eu pudesse ouvir, no mesmo momento em que um silêncio sepulcral se instalou no interior do meu quarto, um pouco pequeno pra tanta bagunça, um pouco grande pra tanta solidão. Era como se, predizendo as gargalhadas e fogos de artifícios da noite seguinte, meus ouvidos resolvessem resguardar-se e esperar até que fossem arrombados pelo irritante som da alegria humana. Ah, que belo sonho seria se o único ruído a ecoar pela eternidade fosse o chiado de minha caneta arranhando o papel, como o sibilo de uma serpente venenosa, porém inofensiva.
E assim se iniciou o último dia do meu último ano: cheio de silêncio e veneno. Era pouco mais de meia noite quando decidi escrever esta carta de suicídio, não que eu me importasse com quem ficasse pra trás, mas para ouvir uma voz qualquer, ainda que dentro da minha própria cabeça. Muitos não sabem, mas escrever é a mais bela forma de conversar consigo mesmo. Palavra por palavra, minha acidez peçonhenta foi se derramando sobre o papel num copioso tom de despedida que noutra situação eu consideraria patético, mas que naquela conjuntura uma pitadinha de morte havia dado um sabor mais perspicaz à coisa. Ora, pois o que há de mais piegas do que despedidas, não é verdade? Ah, o fim... São tantas coisas para se dizer no fim! Não sabia se prestava uma nota de agradecimento a cada amigo ou se redigia um testamento, mas considerei que fosse um tanto indelicado deixar como herança apenas um caderno rabiscado, uma carteira de cigarros, meia dúzia de moedas e minha estimada coleção de arrependimentos. Para a grande maioria, infelizmente, aquilo era pouco demais.
Decidi por um final genérico e cheio de rodeios, para que os entes que aqui permanecerão não ficassem demasiados deprimidos. Meus queridos, há algo em mim que não cabe mais entre nós e, por motivos de ordem maior, me despeço deste mundo sem mais delongas. Aos que ficam, desejo e aconselho que amanhã por esta hora não deixem de brindar e soltar seus fogos coloridos, como é de costume. Receio, porém, não ser possível desta vez me juntar a vós para amá-los e saciá-los, como também é costume. Quanto à saudade, hei de senti-la tanto quanto vocês. Vocês, no entanto, não hão de senti-la tanto quanto eu. Aos que não puderam comparecer, peço que se despeçam deles por mim, e, por favor, não hesitem em beijá-los e lambuzá-los. Eles gostam bastante, eu garanto. Dito isto, desejo a todos um feliz ano novo e desde já agradeço a compreensão. Adeus.
Queria eu ter a diplomática frieza de tecer um discurso destes e cuspi-lo na cara de cada um dos homens que amei. O que me faltava, entretanto, não era frieza, tampouco diplomacia. O que me faltava era coragem. Por isso hoje me imolo, ainda que covarde, num último ato de bravura e me despeço desta batalha coalhada de corpos nus. Hoje me dispo não como um herói ou como uma prostituta, mas como o mártir de mim mesmo. Há de ser heroísmo salvar a própria pele? Há quem diga que sim, pois é preciso lembrar que todo herói é também um assassino, e todo assassino é também um apaixonado: seja pela vítima, seja pela morte em si.
A propósito, desta vez não venho me fazer de vítima: venho fazer uma vítima. É diferente. Analisando as características e as vulnerabilidades da presa, cheguei à conclusão de que, apesar de quase nunca se fazer de difícil, não era o que a gente chama de alvo fácil. Inteligente, audacioso, seguro... Precisaria mais que uma madrugada de solidão e um punhado de palavras tristes pra abatê-lo. Era o tipo de pessoa que se divertia passando a noite com um copo de veneno na mão sem tomar um gole, entendem? Decidir matar-se não é como decidir entre um namorado e outro, meus amigos.
E foram muitos os namorados, há de se admitir. E a cada um que se cansava e ia embora, um novo ingrediente tóxico era acrescentado à mistura: mágoa, insensibilidade, desprezo... Um coquetel sulfúrico capaz de embriagar e corroer as mais nobres almas. Muitos beberam deste licor que me umedece as entranhas, dedicando-me juras, promessas, dinheiro. O mundo a mercê do meu desejo. Bastava um beijo e tudo o que eu quisesse poderia ser meu. Poderia, mas nunca era. Era como se por medo de provar meu próprio veneno nos lábios alheios, meus beijos fossem sempre os primeiros, os únicos e os derradeiros. Um festival de encontros e despedidas, sempre no mesmo dia, hora e local.
Hoje, por fim, este quarto muito menor do que os que fizeram abrigo para essas cenas de amor proibido, está inundado não somente pelo silêncio do luto, mas também pelo copo de veneno que finalmente transborda de obscenidades. Estas são as palavras de um náufrago, que não sabe se bebe o veneno ou se se afoga nele. Num malogro exagerado, vejo-me numa versão tragicômica de Julieta, só que sem Romeu e com um mar de veneno ao invés de um frasco. Parece piada, mas é tragédia.
Amanhã, quando lerem isto, o garoto no auge dos vinte anos que aqui vos fala já estará morto. Sob o seu túmulo, é fato, muitos segredos e muitos nomes serão guardados. Pedro, Alberto, João... Um catálogo de noites de verão. E então, após a grande noite veranil sob a qual festejaremos logo mais, um sol todo amarelo vai surgir por trás das rochas, sejam elas montanhas ou sejam elas corações. Então alguma coisa mágica, dessas coisas mágicas que os céticos costumam duvidar, vai acontecer. E nesse momento sublime não haverá ressurreição, mas a gênesis de um novo homem, ainda apocalíptico, é claro, mas vivo. 

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