Ontem, antes de me deitar, fechei as cortinas, como de costume, para que os maus pensamentos não entrassem pela janela e assombrassem meu sono. Mal sabia eu que eles já haviam entrado, cavalgando nas costas das muriçocas que agora faziam serenata de baixo do meu colchão. A música era irritante, porém melodiosa e trazia nas notas mais baixas um sussurro que clamava por profanação. Era como uma oração antes de jantar, laboriosa e sombria. Muito fervorosa, por sinal.
Quando apaguei a luz elas se calaram por um momento, fungando a escuridão, sondando o ar no intuito de escutar minha respiração adormecida. Mas ao ouvirem meus pés tateando pelo quarto a procura de um travesseiro que caíra ao chão, voltaram a cantar, uma a uma, ainda mais alto e mais irritadiças do que antes. Eram geniosas, aquelas danadinhas! As muriçocas não me incomodavam, sabe, nem suas músicas nem seus beliscões. Sempre gostei das coceiras que me provocavam, eu tenho o sadismo como um dom, mas quando finalmente me deitei, percebi que eram outros os comichões que me importunavam.
Meus sonhos foram se construindo lentamente à medida que a subconsciência aflorava e o corpo abandonava gradualmente a fronteira da realidade. Além da fronteira, as ordinárias sugadoras de sangue já se embeveciam, mas isso pouco me incomodava. Aquém da fronteira, no entanto, uma janela semiaberta se materializara, grande e acortinada. Pelo vão entre um vitral e o outro, caiam pesadas gotas da chuva que há dias açoitava os telhados das casas e desbotava a paisagem, mas teu pequeno quarto continuava aquecido e perfumado por algo que recendia do teu corpo. As gotas invasoras, geladas e atrevidas, pintavam bolotas escuras no forro vermelho da sua cama, davam a impressão de que vinho havia respingado ali. Mas os respingos eram outros, indecentes e inomináveis.
Sonhar com você nunca me foi novidade, só que geralmente eu não me recordo na manhã seguinte. Quando abri os olhos, porém, estava tudo tão fresco na minha cabeça que cheguei a sentir as têmporas doloridas, tornando a fechar os olhos, desejoso de que o ar matinal te apagasse da memória. Mentira minha, isto eu não desejei. Deveria, mas não desejei. Eu covardemente me apeguei àquele sonho assim como me apeguei às tardes primaverais que há tempos não desfruto contigo, e as flores da saudade desabrocharam rubras e espinhosas na teimosia do meu coração. Teimosia maior registrou-se em meus olhos, que se recusaram ceder perante meu esgar de tristeza e encararam os forros da minha cama na ilusória esperança de que eles se avermelhassem. Mas as fronhas e lençóis, tão teimosos quanto, continuaram brancos, sempre brancos.
É que os sonhos, por mais que sejam apenas sonhos, sempre me trazem a verdade. A verdade de saber que tudo o que você representa é um espaço vazio na minha cama, uma voz a menos na solidão das minhas noites, uma ausência que se soma a todas as outras do meu coração, lúgubres e inconcretas. Quando me levanto, nem mesmo as muriçocas estão mais ali para me fazer companhia. Somente eu, meus sonhos e uma janela fechada, encerrando um mundo no qual não me encaixei. O encaixe, tão solícito, faz-se nas entranhas do meu corpo quase que diariamente, preenchendo-me do vazio que só os homens aguentam, do mesmo vazio que transborda do seu peito forte e viril.
E a virilidade, nesta manhã, recendeu pelo meu quarto e eu pude sentir na pele um pinicar que não provinha dos beijos sanguinários das minhas estimadas muriçocas. Era, para minha infeliz surpresa, mesmo depois de tantos dias, o seu cheio tatuado no meu corpo desnudo. E o meu alento foram lágrimas não derramadas, imaginando que há alguns segundos talvez estivesse você ao meu lado, dormindo comigo, me abraçando pelas costas, me chamando por um nome que é só meu. E meu corpo escarnificado ardeu ao ser banhado pela realidade. Pois uma tatuagem não se esconde, não se apaga, não esquece. Perpetua-se.
Então a muriçoca te pica, te chupa e quando vc acorda ela nem ta mais ali? vc tem q parar de se deixar usar dessa forma. Cade sua autoestima?
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