Tudo aconteceu numa tarde de outono, sufocante
demais para nomeá-la inverno, cinzenta demais para chamá-la verão. Naquele dia
fatídico, como em todo dia fatídico, eu acordei rebuçado de alardes e dores,
tendo sempre o cuidado de me manter longe do alcance das janelas, ora, pois o
céu estava carregado e trovoava em sussurros: eram as nuvens conspirando algo
que cairia sobre mim. Se eram chuviscos sussurrantes ou tempestades uivantes,
àquela hora eu ainda não sabia, mas no fundo eu já imaginava que viria em
pancadas. Passava pouco das três – a hora da crucificação, como dizem os
antigos – quando as semanas de calvário que pesavam sobre os meus ombros
resolveram ceder sobre meus joelhos magros, um dia esfolados de ave marias,
hoje escoriados pela desonrosa posição dos cabritos. Bem sabem os sodomitas que
nem tudo que se faz ajoelhado é rezar.
Lá fora, onde meus gemidos não são ouvidos, o
mormaço dava lugar a uma brisa gelada que assobiava, não como uma corrente de
ar se enfiando por uma fresta, mas obscenamente, feito um bêbado chamando a atenção
de uma prostituta. Como um vira-lata que escuta a voz do dono, aquele chamado,
outrora tão familiar, me fez levantar as orelhas e abanar o rabo, e por um
breve segundo eu me esqueci das coleiras da moral e das cruzes calvariantes que
por semanas carreguei. Eram cruzes de
silêncio, esculpidas em toras de indiferença, amarradas com cordas de sufoco e
pregadas com estacas de perfurar corações. Poderiam ser obra de um marceneiro
satânico, mas eram, lastimavelmente, os presentes que recebi do homem que mais
amei. De olhos e ouvidos virgens me mantive por muito tempo, mas foram tantos
os silêncios que bastou um assovio gelado numa tarde de solidão para macular as
juras de amor eterno que dediquei a ti. Eis a falácia do reflexo, o paradoxo do
espelho, o princípio alquímico da ação e reação, onde o amor e ódio não são
imagens contrárias, mas inversamente proporcionais.
Reflexo por reflexo, nu perante o nu, lá estava eu
refletido num retângulo prateado que muitas vezes foi moldura para o nosso
amor. Naquele espelho cristalino demais, naquele banheiro sempre limpo demais,
permiti que a imundície do meu coração solitário me fizesse companhia, e que a
fúria da rejeição distorcesse a verdade, como a distorção de um flash disparado
contra um espelho. E sendo assim, por um descuido, ingenuamente capturei o
registro do meu pecado, sem me atentar que o esgar indolor que se escondia no
fundo dos meus olhos jamais poderia ser fotografado. Para a posteridade deixei
o retrato da minha maledicência, para finalmente descobrir que não há forma de
fotografar o que há no meu coração. Hoje, sozinho nesta minha cela que alguns
chamam de quarto, pago a sentença perpétua por um crime que não cometi. Sentado
nesta cama fria que já nem tem mais o meu cheiro, encaro com rancor a última
fotografia do meu álbum de fracassos.
É o que resta ao assassino retardado, que ao invés
de tecer um crime sem suspeitas, tropeça na dúvida, esbarra no medo, se
acidenta na fuga, deixa um lamaçal de pegadas e provas espalhadas pelo chão e
na hora de fazer sua vítima, por fim, descobre que a arma não tem munição. Não
obstante, preparo um dossiê de arrependimentos e o entrego nas mãos do
meritíssimo homem que me responde sempre com o mesmo bordão de justiça: “Você
tem o direito de permanecer calado!”. Ainda que mudo, mesmo que calado, temo me
engasgar com o grito de “eu te amo” que há muito trago entalado na garganta,
não porque eu não conseguisse dizê-lo, mas por medo de que ele nunca fosse
respondido. Doravante, sem álibi e sem
perdão, espio através do meu espelhinho de cabeceira – muito menor que o seu –
e vislumbro o olhar perdido da única testemunha da minha inocência. Meus olhos,
no entanto, castanhos e cheios de argumentos vazios, só podem me alentar com o
mesmo soslaio impiedoso que muitas vezes te flagro lançando sobre mim. Como
podem ser os teus olhos tão meigos e, ao mesmo tempo, tão duros?
Dureza por dureza, hoje posso apenas me conformar
com a rigidez do teu corpo dentro do meu, como uma esmola, uma gorjeta, um
prêmio de consolação por bom comportamento. Minhas tardes de outono, hoje,
diferentes daquela em que por um infortúnio te perdi, me convidam a banhos de
sol fora da cela que sequer me queimam a pele – como é do seu agrado – e que
tampouco me aquecem o espírito. Na frialdade do inverno que se aproxima, sofro
por antecipação às noites que não me aquecerei em teus braços, imaginando os
usurpadores de um lugar que nunca acreditei que fosse meu. Quisera eu que, por
um milagre, você pudesse ler o reflexo dos meus olhos e visse que nem só de
fotos no espelho se faz um autorretrato. Minha autoimagem é muito mais
diabólica que uma silhueta nua na penumbra de um banheiro, mas a escuridão que
se aloja no avesso das minhas pálpebras é angelical como um céu estrelado, anoitecendo
meus medos sempre que fecho os olhos pra receber um beijo seu.
Mas palavras – como você insiste em dizer – são só
palavras. E um poeta, por sua vez, é só um poeta. Dói admitir que eu seja apenas
mais um. Um escravo do verbo, a serviço do que é duro ao coração e macio aos
ouvidos. Dissera uma vez um sábio, um velho amigo dos tempos de criança, que na
sua mais humilde opinião as palavras são, sobretudo, nossa inesgotável fonte de
magia. Sob a maldição do silêncio eu me apaixonei por ti, me contentando em
lamber e sugar uma língua salivante, porém adormecida. No sono encantado dos
príncipes, onde a magia das palavras não é mera poesia, mas suprema lei, muitas
bocas se satisfizeram na minha, mas apenas uma me despertou do eterno pesadelo.
Desde então, depois que a flâmula da minha lealdade chegou a galope, jamais
cavalguei ante um brasão que não fosse o teu. Cabe a ti o decreto de despir
essa máscara de bobo cortês e subir ao trono que é seu por direito. Em algum
lugar neste calabouço que você chama de coração, eu sei, há uma multidão que
clama: “Vida longa ao rei!”.
E assim, enquanto minhas metáforas tolas brincam com
a longitude da vida, a minha se encurta a cada sorriso que você me nega, a cada
abraço frouxo e ligeiro que você me dá, a cada gemido de prazer que se perde no
silêncio das madrugadas. Insisto, entre reflexos culpados e versos confessionais,
em tentar descobrir uma forma de abrir o seu peito e plantar dentro dele a
verdade. Pois ser artista, ao contrário do que pensa, não faz de mim um
fabricante de mentiras, mas o oposto: um cultivador da mais intensa verdade. É
fazer das vísceras coração, e entregar a ti este meu coração indigesto, incapaz
de engolir as ofensas que ferem meus ouvidos anestesiados de paixão. Pois ainda
que não nos sobre uma gota de amor, que me reste de herança a poesia: “Sabemos
que existem sombras para as sombras das coisas, como um reflexo visto no
espelho de um espelho. Sabemos que existem círculos dentro de círculos e
dimensões além de dimensões. A própria realidade é uma sombra, somente uma
aparência aceita por aquele cujos olhos evitam o que está além.”.