Naquele
tempo, num tempo onde nem tudo que tinha teto poderia ser chamado de lar, eu há
muito já havia deixado de ser poeta. Não que isso tenha sido uma absoluta
tragédia, uma vez que também há muito eu já havia previsto, talvez propositalmente
causado, esta inevitável despedida. Ora, pois o destino, ao contrário de Deus,
tarda, mas não falha. É como eu costumava dizer: são tantas as tragédias que
nos deixam sem palavras que, quando se percebe, já não há mais por que ou pelo
quê proclamá-las. E desta vez, conformado ao silêncio, fui levado a conhecer uma
dor que, como sugeria a ocasião, nenhuma das minhas mais eloquentes poesias
seria capaz de retratar. Mas não se apiedem tão de pressa, meus caros, pois ao
contrário do que se imagina, desta vez eu não venho me martirizar.
Foram
dias intermináveis, daqueles em que parece transcorrer um século
entre o nascer do sol e o anoitecer. E entre o por do sol e o amanhecer, uma
vida inteira. Vinte e quatro horas eram suficientes para que revoluções,
romances e guerras fossem travadas no meu peito encardido de ideais utópicos,
assim como uma madrugada era suficiente para colocar todos esses ideais abaixo.
Foram noites sem fim, admito, daquelas em que se começa bebendo e chorando, e
se termina sendo comido e sorrindo. Pois na algazarra da cidade grande você
aprende que um dia é do caçador e o outro, imaginem só, é do caçador também.
Naqueles
dias matar ou morrer não eram antônimos, era um lema. Pois num mundo onde a
vida era regida por ideologias tão retilíneas, viver tortuosamente deixara de
ser motivo de represália e se tornara uma dádiva da qual poucos podiam se
orgulhar. E como o orgulho é e sempre foi uma das minhas mais altas fortalezas,
lá estava eu, torto como nenhuma prece, conselho ou oração jamais seria capaz
de endireitar. Eu carregava meu troféu de injúrias como se fosse banhado a
ouro, sem notar que ouro propriamente dito era a última das coisas que me
banhavam. Pobre, sozinho e desalojado, meu último consolo foi me agarrar aos
poucos sonhos que me restavam, como se sonhar botasse comida à mesa.
A fome
que me assolou nos dias que se seguiram pouca ou nenhuma relação tinha com
aquilo que eu engolia ou deixava de engolir, mas justamente com aquilo que eu
regurgitava ou deixava de regurgitar. Eram tantos ranços, remorsos e fracassos
amuados em meu estômago que dentre as minhas entranhas formou-se, perdoem a
patética metáfora, um buraco negro. Tudo que eu botava para dentro, por mais
lindo ou sublime que fosse, consumia-se e desaparecia com a mesma rapidez de um
amor de verão.
E assim,
entre amores veranis e paixões invernais, tudo o que é compreendido pelo verbo
amar, assim como a minha poesia, extinguiu-se num outono de folhas e sonhos
caídos. E as primaveras que outrora sonhei festejar, descobri por fim, eram
apenas o prelúdio de um futuro que jamais floresceria. Foram esses desconsolos,
céticos, tortuosos e orgulhosos, que me conduziram ao ser humano frágil e
ferido em que me transformei, um interditador de esperanças, um colecionador de
mágoas. E foi justamente nesta condenatória reflexão, nesta infeliz reposta, que
percebi que, sobretudo, eu era uma pessoa indubitavelmente fadada à vitória.
Pois se
ainda que no fundo do poço mais escuro fui capaz de emergir e escrever estas
palavras, é por que algo ainda vive em mim. Deus? Muitos diriam que sim, mas eu
prefiro acreditar que dentre todas as mazelas da humanidade, as poucas coisas
boas que às vezes fazemos são mérito nosso. Quando digo que meu orgulho é minha
maior força é por que me envaideço até mesmo das piores coisas que existem em
mim, e isso me faz transpor qualquer espécie de ética ou moral estabelecida. Amar-me não
me faz somente forte, como também me devolve o que por um descuido quase perdi:
amar-me me faz poeta.