sábado, 21 de dezembro de 2013

O suplício do poeta


Naquele tempo, num tempo onde nem tudo que tinha teto poderia ser chamado de lar, eu há muito já havia deixado de ser poeta. Não que isso tenha sido uma absoluta tragédia, uma vez que também há muito eu já havia previsto, talvez propositalmente causado, esta inevitável despedida. Ora, pois o destino, ao contrário de Deus, tarda, mas não falha. É como eu costumava dizer: são tantas as tragédias que nos deixam sem palavras que, quando se percebe, já não há mais por que ou pelo quê proclamá-las. E desta vez, conformado ao silêncio, fui levado a conhecer uma dor que, como sugeria a ocasião, nenhuma das minhas mais eloquentes poesias seria capaz de retratar. Mas não se apiedem tão de pressa, meus caros, pois ao contrário do que se imagina, desta vez eu não venho me martirizar.
Foram dias intermináveis, daqueles em que parece transcorrer um século entre o nascer do sol e o anoitecer. E entre o por do sol e o amanhecer, uma vida inteira. Vinte e quatro horas eram suficientes para que revoluções, romances e guerras fossem travadas no meu peito encardido de ideais utópicos, assim como uma madrugada era suficiente para colocar todos esses ideais abaixo. Foram noites sem fim, admito, daquelas em que se começa bebendo e chorando, e se termina sendo comido e sorrindo. Pois na algazarra da cidade grande você aprende que um dia é do caçador e o outro, imaginem só, é do caçador também.
Naqueles dias matar ou morrer não eram antônimos, era um lema. Pois num mundo onde a vida era regida por ideologias tão retilíneas, viver tortuosamente deixara de ser motivo de represália e se tornara uma dádiva da qual poucos podiam se orgulhar. E como o orgulho é e sempre foi uma das minhas mais altas fortalezas, lá estava eu, torto como nenhuma prece, conselho ou oração jamais seria capaz de endireitar. Eu carregava meu troféu de injúrias como se fosse banhado a ouro, sem notar que ouro propriamente dito era a última das coisas que me banhavam. Pobre, sozinho e desalojado, meu último consolo foi me agarrar aos poucos sonhos que me restavam, como se sonhar botasse comida à mesa.
A fome que me assolou nos dias que se seguiram pouca ou nenhuma relação tinha com aquilo que eu engolia ou deixava de engolir, mas justamente com aquilo que eu regurgitava ou deixava de regurgitar. Eram tantos ranços, remorsos e fracassos amuados em meu estômago que dentre as minhas entranhas formou-se, perdoem a patética metáfora, um buraco negro. Tudo que eu botava para dentro, por mais lindo ou sublime que fosse, consumia-se e desaparecia com a mesma rapidez de um amor de verão.
E assim, entre amores veranis e paixões invernais, tudo o que é compreendido pelo verbo amar, assim como a minha poesia, extinguiu-se num outono de folhas e sonhos caídos. E as primaveras que outrora sonhei festejar, descobri por fim, eram apenas o prelúdio de um futuro que jamais floresceria. Foram esses desconsolos, céticos, tortuosos e orgulhosos, que me conduziram ao ser humano frágil e ferido em que me transformei, um interditador de esperanças, um colecionador de mágoas. E foi justamente nesta condenatória reflexão, nesta infeliz reposta, que percebi que, sobretudo, eu era uma pessoa indubitavelmente fadada à vitória.
Pois se ainda que no fundo do poço mais escuro fui capaz de emergir e escrever estas palavras, é por que algo ainda vive em mim. Deus? Muitos diriam que sim, mas eu prefiro acreditar que dentre todas as mazelas da humanidade, as poucas coisas boas que às vezes fazemos são mérito nosso. Quando digo que meu orgulho é minha maior força é por que me envaideço até mesmo das piores coisas que existem em mim, e isso me faz transpor qualquer espécie de ética ou moral estabelecida. Amar-me não me faz somente forte, como também me devolve o que por um descuido quase perdi: amar-me me faz poeta.