Lábios rachados. Não pelo sol, mas pelo sal que
tempera a várzea dos olhos meus. Ressequidos, escarificados, banhados pelo
agreste delgado de uma boca que nunca recebeu um beijo de verdadeiro amor. A
pele crespa, áspera, amontoava-se por sobre dentes amarelados cujo sorriso esperava
eternamente o bater de uma fotografia, uma fotografia revelada no avesso dos
olhos daqueles que nunca souberam amar. Não houve flash, não houve fumaça, não
houve amor. O único relâmpago que rasgou a escuridão nunca chegou a ser visto
por olhos humanos, pois aquela luz se chamava razão, e ela não os pertencia.
Senti na testa o dedo da moral me julgar sem o
menor consolo, porém na nuca era a mão rude e calejada da devassidão que me enforcava
sem o menor pudor, como se minhas ancas curvilíneas fossem pedaços de carne
entregues ao destino. Se eram homens ou abutres que haveriam de comê-las, nunca
cheguei a saber, mas ao destino não sobrou nenhuma orgástica fatia do meu corpo
destemperado e cru. Apenas os lábios, murchos como uma flor colhida no inverno,
podres como uma fruta regada no verão.
Outonos e mais outonos sarapintaram meu chão com
suas folhas alaranjadas, deixando que somente os ramos secos da minha
imaginação continuassem apontando para o céu sem vento, em sua cor de tristeza.
Cada galho representava um destino, assim como cada forquilha significava o
início de um novo caminho. A grande desgraça era saber que a primavera jamais
chegaria, pois independente do caminho escolhido, meus botões cairiam antes mesmo
que chegassem a florescer. E me restaria, como de costume, apenas os galhos
secos, as folhas mortas e a casca alquebrada, trincada como a boca que vos
fala.
Quão afáveis foram os beijos com sabor de sangue,
lavrando meus lábios com línguas macias e presas mordentes, sublimando da minha
saliva toda a inocência que nunca preencheu meu espírito, silvando ao pé do
ouvido promessas de amor que findam quando o dia amanhece. Doravante, quando o
sol finalmente desponta, nem prometidos e nem prometedores fazem-se presentes,
fogem todos, no intuito de alimentar suas almas sujas e anoitecidas, porém não
tão escuras quanto a minha.
Até que num dia como outro qualquer, triste como outro
qualquer, os botões das flores deixaram de cair, tal como deixaram de nascer. As
folhas deixaram de forrar o chão, pois sequer chegavam a brotar. E os lábios
não mais voltaram a sangrar, pois jamais voltaram a sorrir. A fotografia foi
revelada por fim registrando o esgar indolor de um rosto cadavérico, no entanto
de uma imaculada beleza, de uma perfeição intocada. Satânica, diriam alguns. Os
olhos sepultavam-se profundamente, toldados por cílios bonitos e sobrancelhas
minuciosamente desenhadas, doentios, mas ainda assim radiantes.
E a boca, ah, aquela boca, desenhava-se no papel
num ângulo tão indescritível quanto as palavras que ela nunca fora capaz de
dizer, pois mesmo representada em tinta, luz e sombra, emitia um desespero
crocitante àqueles que tiveram a audácia de amar sem ser amado. Exprimia,
selada e silenciosa, não dor, não sofrimento, tampouco alegria. Não sorria nem
se enrugava. Sem sangue, sem cor, sem lábios trincados. Sem primaveras, verões
ou outonos alaranjados. Não passava de uma cicatriz, um lacre de medo onde
antes haviam canções, beijos e sorrisos. E dentro dela, amaldiçoado pelo
silêncio e pela distância, grafado a ferro e fogo na rósea maciez da língua,
havia um nome. Um nome que jamais voltaria a inspirar poesias. Um nome que era
seu, outrora meu, e de mais ninguém.